Páginas

sexta-feira, 23 de julho de 2021

NÃO SE PODE AMAR A DEUS E A MAMOM

  

Ninguém pode servir a dois senhores;
porque ou há de odiar um e amar o outro,
ou se dedicará a um e desprezará o outro.
Não podeis servir a Deus e a Mamom.

Mateus 6:24


Éramos um grupo muito pequeno, que variava entre 4 e 7 pessoas. Nos reuníamos no auditório da Maternidade Doutor Adalberto Pereira toda terça-feira, às 20 horas. Nessa noite estavam o senhor Ramiro, que sempre presidia às reuniões, a Norma, que era a médium, o Franklin, que era o doutrinador, o Benjamim, a Célia e eu. Feitas as preces iniciais e solicitado o amparo espiritual para o bom andamento da reunião, ela teve início assim que desliguei as luzes do auditório, deixando acesa apenas uma pequena e pálida luz azulada.

Instantes depois de iniciada a reunião, a Norma começou a manifestar algum incômodo: uns leves gemidos e discretas contrações do abdômen. Neste momento, com sua fala sempre clara e muito bem articulada, o Franklin disse em voz alta, embora num tom benevolente:

“Seja bem-vindo a irmã ou o irmão que está influenciando a médium, se você deseja se manifestar por meio dela, que o faça em nome de Deus.”

Proferidas essas palavras, a Norma começou a se contorcer de dor sobre o próprio abdômen e murmurar algumas palavras inaudíveis; no mesmo instante começou a se materializar no chão, ao lado da Norma, o espírito de uma mulher toda suja, com as mãos em concha repletas de lama, vestida de trapos de seda negra e com suas carnes em decomposição. Por meio da Norma, aquela mulher começou a dizer:

“Essas joias são minhas, ninguém vai roubá-las de mim, ninguém, eu sou uma rainha!”. E aparentemente exausta repetia essa mesma frase num cicio.

Para nossa surpresa, em seguida, ela levou a mão cheia de lama à boca e começou a comê-la avidamente. Aquela lama repugnante que devia ser uma mistura da terra do seu próprio sepulcro, da madeira podre do seu caixão, dos trapos das roupas decompostas e do pus da carne podre daquela sofredora criatura.

Imediatamente após engolir aquela lama, ela começou a vomitar, amparando o vômito em suas próprias mãos e mais uma vez, estupefatos, vimos que o que ela vomitava eram joias: anéis, brincos, finíssimas pulseiras e colares, pérolas e pedras preciosas das mais variadas cores, formas e tamanhos. E tudo isso quase que instantaneamente se convertia em lama, para desespero daquela pobre alma, que voltava a dizer que as joias eram dela e que ninguém iria roubá-las e tornava a engolir a lama que mais uma vez se metamorfoseava em novas e diferentes joias, que por sua vez instantaneamente depois de vomitadas transmutavam-se naquela lama pútrida, num ciclo ininterrupto.

Depois de alguns poucos minutos, interrompendo aquela triste cena, o Franklin chamou a atenção daquela mulher dizendo: “Minha irmã, ninguém aqui quer as suas joias! Deus te trouxe aqui para que você fosse agraciada com uma joia magnífica, muito mais bonita e pura que todas essas que você traz consigo. Ele me pediu para que lhe entregasse. A joia que Ele me mandou te entregar tem um nome: Ela se chama redenção”.

Ao ouvir essa palavra, a mulher pareceu se acalmar um pouco, sua respiração ficou um pouco menos ofegante, ela levantou o rosto em cujo olhar era perceptível seu estado de semi-inconsciência.

Nessa hora, o Franklin se aproximou dela e pediu gentilmente: “Nos conte sua história.” E como que em transe ela começou: “Meu nome é Cálix, esposa de Roderic, rei do Norte da Ibéria. Vivo num castelo nas proximidades de Córdoba. Estamos no dia 31 de julho do Ano 711 da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Estou nos meus aposentos e da janela vejo a aproximação dos invasores sarracenos. O rei, seus cavaleiros e todos os homens e jovens da região estão a postos, apesar disso, o exército sarraceno é vinte, trinta vezes mais numeroso e organizado. Eu não vou fugir como a servas fizeram, porque sou uma rainha, seria indigno à minha nobreza que eu me vestisse como uma delas e tentasse fugir. Eu vou ficar e defender o nosso tesouro, nem que para isso eu tenha que engolir cada anel, cada pulseira, cada colar; os que eu não conseguir engolir inteiro eu arranco as pedras preciosas e as engulo e para que os infiéis não as encontrem eu beberei esse veneno e as levarei comigo para o céu, onde eles não podem entrar. Quando eu percebi que a defesas capitaneadas por Roderic não resistiriam por muito mais tempo às investidas dos sarracenos, eu decidi engolir as joias e as pedras preciosas. Ao olhar novamente pela janela vi que os infiéis haviam aniquilado todas as defesas, decapitado o rei e seus cavaleiros e já estavam às portas do castelo, tentando arrombá-las. Peguei do cálice de veneno e o traguei até a última gota, quando ouvi que batiam à minha porta, me joguei pela janela. Desde então eu vago pelo mundo, fugindo de demônios que querem roubar minhas joias. Pelos caminhos tenebrosos que percorro, pergunto às pessoas que encontro onde está a porta do céu, a maioria ri de mim, outras me agridem, outras ainda choram ou simplesmente não respondem”. Nesse ponto, Cálix interrompeu a narração e em soluços começou a chorar.

O Franklin se ajoelhou diante dela e começou orar baixinho: “Pai Nosso que estás no Céu, Santificado seja o Vosso Nome...”. Depois disso, mas ainda em prece, ele suplicou a Deus que concedesse àquela mulher a graça de enxergar a realidade que nos cercava.

Então, voltando-se para Cálix, ele levantou os olhos marejados e disse: “Minha irmã, olhe ao nosso redor, veja esse lugar, veja a minha roupa. Tudo é diferente.  Aquelas joias já não existem mais, seu castelo já não existe mais, aquele seu corpo já não existe mais, aquele tempo já não existe mais. Deus permitiu que você viesse aqui hoje pra nos ensinar e ao mesmo tempo apender que todo ouro, toda joia do mundo é lama que não serve pra nada, se não for usada em benefício dos outros. Se uma joia não servir para matar a fome de quem tem fome, se o ouro não servir para comprar água ao sedento, tanto a joia quanto o ouro se converterão em lama nas mãos do seu possuidor. Toda e qualquer riqueza é apenas lama, se não for usada para curar a ferida do próximo, para instruir o próximo e para protegê-lo de todo o mal”.

Cálix olhou ao redor, talvez enxergando pela primeira vez a realidade depois de 1297 anos, se ajoelhou, deixou a lama escorrer de suas mãos, ergueu-as lentamente em direção ao céu e agradecida e aliviada chorou pela última vez naquela noite. Espíritos de Luz surgiram como que num passe de mágica, ampararam-na carinhosamente, colocaram-na em uma maca e a conduziram para um hospital no mundo espiritual.


Nenhum comentário:

Postar um comentário