Mateus 6:24
Éramos um grupo muito pequeno, que variava entre 4 e 7
pessoas. Nos reuníamos no auditório da Maternidade Doutor Adalberto Pereira
toda terça-feira, às 20 horas. Nessa noite estavam o senhor Ramiro, que sempre presidia
às reuniões, a Norma, que era a médium, o Franklin, que era o doutrinador, o
Benjamim, a Célia e eu. Feitas as preces iniciais e solicitado o amparo
espiritual para o bom andamento da reunião, ela teve início assim que desliguei
as luzes do auditório, deixando acesa apenas uma pequena e pálida luz azulada.
Instantes depois de iniciada a reunião, a Norma
começou a manifestar algum incômodo: uns leves gemidos e discretas contrações
do abdômen. Neste momento, com sua fala sempre clara e muito bem articulada, o
Franklin disse em voz alta, embora num tom benevolente:
“Seja bem-vindo a irmã ou o irmão que está
influenciando a médium, se você deseja se manifestar por meio dela, que o faça
em nome de Deus.”
Proferidas essas palavras, a Norma começou a se
contorcer de dor sobre o próprio abdômen e murmurar algumas palavras inaudíveis;
no mesmo instante começou a se materializar no chão, ao lado da Norma, o
espírito de uma mulher toda suja, com as mãos em concha repletas de lama,
vestida de trapos de seda negra e com suas carnes em decomposição. Por meio da
Norma, aquela mulher começou a dizer:
“Essas joias são minhas, ninguém vai roubá-las de mim,
ninguém, eu sou uma rainha!”. E aparentemente exausta repetia essa mesma frase
num cicio.
Para nossa surpresa, em seguida, ela levou a mão cheia
de lama à boca e começou a comê-la avidamente. Aquela lama repugnante que devia
ser uma mistura da terra do seu próprio sepulcro, da madeira podre do seu
caixão, dos trapos das roupas decompostas e do pus da carne podre daquela sofredora
criatura.
Imediatamente após engolir aquela lama, ela começou a
vomitar, amparando o vômito em suas próprias mãos e mais uma vez, estupefatos,
vimos que o que ela vomitava eram joias: anéis, brincos, finíssimas pulseiras e
colares, pérolas e pedras preciosas das mais variadas cores, formas e tamanhos.
E tudo isso quase que instantaneamente se convertia em lama, para desespero
daquela pobre alma, que voltava a dizer que as joias eram dela e que ninguém
iria roubá-las e tornava a engolir a lama que mais uma vez se metamorfoseava em
novas e diferentes joias, que por sua vez instantaneamente depois de vomitadas
transmutavam-se naquela lama pútrida, num ciclo ininterrupto.
Depois de alguns poucos minutos, interrompendo aquela triste
cena, o Franklin chamou a atenção daquela mulher dizendo: “Minha irmã, ninguém
aqui quer as suas joias! Deus te trouxe aqui para que você fosse agraciada com
uma joia magnífica, muito mais bonita e pura que todas essas que você traz
consigo. Ele me pediu para que lhe entregasse. A joia que Ele me mandou te
entregar tem um nome: Ela se chama redenção”.
Ao ouvir essa palavra, a mulher pareceu se acalmar um
pouco, sua respiração ficou um pouco menos ofegante, ela levantou o rosto em
cujo olhar era perceptível seu estado de semi-inconsciência.
Nessa hora, o Franklin se aproximou dela e pediu gentilmente:
“Nos conte sua história.” E como que em transe ela começou: “Meu nome é Cálix,
esposa de Roderic, rei do Norte da Ibéria. Vivo num castelo nas proximidades de
Córdoba. Estamos no dia 31 de julho do Ano 711 da Graça de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Estou nos meus aposentos e da janela vejo a aproximação dos invasores
sarracenos. O rei, seus cavaleiros e todos os homens e jovens da região estão a
postos, apesar disso, o exército sarraceno é vinte, trinta vezes mais numeroso
e organizado. Eu não vou fugir como a servas fizeram, porque sou uma rainha,
seria indigno à minha nobreza que eu me vestisse como uma delas e tentasse fugir.
Eu vou ficar e defender o nosso tesouro, nem que para isso eu tenha que engolir
cada anel, cada pulseira, cada colar; os que eu não conseguir engolir inteiro
eu arranco as pedras preciosas e as engulo e para que os infiéis não as
encontrem eu beberei esse veneno e as levarei comigo para o céu, onde eles não
podem entrar. Quando eu percebi que a defesas capitaneadas por Roderic não
resistiriam por muito mais tempo às investidas dos sarracenos, eu decidi engolir
as joias e as pedras preciosas. Ao olhar novamente pela janela vi que os
infiéis haviam aniquilado todas as defesas, decapitado o rei e seus cavaleiros
e já estavam às portas do castelo, tentando arrombá-las. Peguei do cálice de
veneno e o traguei até a última gota, quando ouvi que batiam à minha porta, me
joguei pela janela. Desde então eu vago pelo mundo, fugindo de demônios que
querem roubar minhas joias. Pelos caminhos tenebrosos que percorro, pergunto às
pessoas que encontro onde está a porta do céu, a maioria ri de mim, outras me
agridem, outras ainda choram ou simplesmente não respondem”. Nesse ponto, Cálix
interrompeu a narração e em soluços começou a chorar.
O Franklin se ajoelhou diante dela e começou orar
baixinho: “Pai Nosso que estás no Céu, Santificado seja o Vosso Nome...”.
Depois disso, mas ainda em prece, ele suplicou a Deus que concedesse àquela
mulher a graça de enxergar a realidade que nos cercava.
Então, voltando-se para Cálix, ele levantou os olhos
marejados e disse: “Minha irmã, olhe ao nosso redor, veja esse lugar, veja a
minha roupa. Tudo é diferente. Aquelas joias já não existem mais, seu
castelo já não existe mais, aquele seu corpo já não existe mais, aquele tempo
já não existe mais. Deus permitiu que você viesse aqui hoje pra nos ensinar e
ao mesmo tempo apender que todo ouro, toda joia do mundo é lama que não
serve pra nada, se não for usada em benefício dos outros. Se uma joia não
servir para matar a fome de quem tem fome, se o ouro não servir para comprar
água ao sedento, tanto a joia quanto o ouro se converterão em lama nas mãos do
seu possuidor. Toda e qualquer riqueza é apenas lama, se não for usada para curar
a ferida do próximo, para instruir o próximo e para protegê-lo de todo o mal”.
Cálix olhou ao redor, talvez enxergando pela primeira
vez a realidade depois de 1297 anos, se ajoelhou, deixou a lama escorrer de suas
mãos, ergueu-as lentamente em direção ao céu e agradecida e aliviada chorou
pela última vez naquela noite. Espíritos de Luz surgiram como que num passe de
mágica, ampararam-na carinhosamente, colocaram-na em uma maca e a conduziram para
um hospital no mundo espiritual.
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