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quinta-feira, 4 de novembro de 2021

ERNESTO


Meu nome é Ernesto Gonçalves de Oliveira. Nasci em uma família pobre, passei algumas dificuldades, mas nunca passei fome – o que, neste mundo, significa ser um privilegiado, um abençoado –, isso, graças ao esforço de minha mãe, que sempre batalhou duro pra nos sustentar. Não conheci meu pai... ainda bem, pelo menos assim não tive a oportunidade de realizar meu desejo de matá-lo.

Acho melhor voltar um pouco mais no tempo e contar minha história do começo...

Minha mãe e meu pai moravam em uma cidade do interior, no centro de um Estado do interior. Se conheceram na praça (único ponto de encontro daquela cidade e de muitas outras pelo Brasil a dentro, naquele tempo e até hoje) e lá mesmo se apaixonaram e namoraram. Namoraram tanto e tão intensamente que minha mãe ficou grávida de mim.

Por temerem a reação de meus avós maternos, católicos ortodoxos da velha cepa, minha mãe e meu pai resolveram fugir pra uma cidade grande. Então, juntaram seus poucos pertences e numa madrugada, sem avisar, nem deixar cartas ou se despedir, vieram pra cá. Isso aconteceu em meados de 1978.

Logo que aqui chegaram, meu pai se empregou numa grande loja de móveis e eletrodomésticos da época – Carlos Saraiva –, pois, segundo minha mãe, ter a capacidade de vender era o máximo que se podia exigir da colossal inteligência de meu pai. Por estar grávida e não conseguir trabalho fixo, minha mãe teve que se virar fazendo bicos para a vizinhança: costurando, lavando roupas, cuidando de crianças e faxinando casas, etc.

Cinco meses depois de chegarem aqui e cinco semanas antes de eu nascer, meu pai, talvez por já ter adquirido uma certa experiência no quesito fuga, resolveu fugir com uma de suas clientes. E assim deixou minha mãe grávida, nas vésperas do parto, sozinha, desamparada, cercada de pessoas desconhecidas, numa cidade ainda mais desconhecida pra ela.

Posso tranquilamente dizer que a fuga de meu pai foi o terceiro susto ou baque que sofri – o primeiro foi quando minha mãe se desesperou ao perceber que estava grávida de mim, o segundo foi quando, meu pai e minha mãe, resolveram fugir de meus avós –, isso significa que eu já tinha adquirido três traumas e ainda faltavam um mês e uma semana pra eu nascer.

No dia 25 de dezembro eu nasci. Uma bela data pra se nascer, mas meu nascimento não foi tão tranqüilo nem tão auspicioso quanto o do Cristo. Digo isso, pois, não havia o “José”, nem os Três Reis Magos, tampouco ouro, mirra e incenso (ou qualquer outro presente) e o mais importante: não havia nenhuma Estrela de Belém ou luz anunciando o meu nascimento. Muito pelo contrário...

No exato momento do parto, houve uma queda de energia e o Centro Cirúrgico onde eu estava nascendo ficou às escuras. Naquele momento, naturalmente minha mãe ficou apreensiva, nervosa, percebendo toda aquela frenética movimentação de médicos e enfermeiros para que uma fonte de luz alternativa fosse providenciada (veja bem: faltou energia, não na cidade, no bairro ou no hospital inteiro, mas apenas – e o apenas é toda a diferença – no lugar onde eu nascia). Pronto! Mais um trauma, o quarto. Inclusive, de agora em diante, deixo por sua conta essa contagem.

Um mês depois de me colocar no mundo minha mãe já estava à procura de um trabalho que garantisse o nosso sustento, mas para isso foi obrigada a me deixar sob os cuidados de uma vizinha, dona Sebastiana, porque morávamos na periferia e naquela época não havia creches nas periferias (como se houvesse hoje).

Dona Sebastiana era uma senhora de aproximadamente 35, 40 anos, um pouco gorda, desalinhada, não era má, mas era negligente: a pachorra em forma de gente. Dona Sebastiana tinha dois filhos pequenos: Mateus (1 ano) e Marcos (3 anos) – pra mim Hitler e Mussoline, visto que a brincadeira predileta de ambos era me bater pra me ver chorar.

Tudo que minha mãe levava de alimento pra mim Dona Sebastiana dividia com seus filhos. Começou dividindo o leite de minha mamadeira, depois dividiu minhas bolachas e meus biscoitos, e dividindo continuou enquanto frequentei sua casa, ou seja, por mais de oito anos.

Hoje posso dizer que, desde muito cedo, recebi lições marcantes sobre política, pois conheci na prática e na pele os dois principais regimes políticos do século 20.

O Capitalismo me ensinou que a importância de um indivíduo está diretamente relacionada ao seu poder de consumo, isso ficou evidente pra mim, pois minha mãe havia sido obrigada a colocar minha vida nas mãos de uma desconhecida, para que esse estranho sistema – no qual ter é ser – aceitasse nossa existência e não nos “deletasse” e enviasse à lixeira da indigência, como freqüentemente faz com milhões e milhões de seres humanos.

Por outro lado, com o Comunismo aprendi que em qualquer regime político que se materialize sempre vai haver os privilegiados, os parasitas, que “mamam” no Estado ou se beneficiam do trabalho alheio. Era exatamente isso que acontecia na casa de dona Sebastiana – que depois de adulto passei a considerar uma espécie de território soviético ou cubano –, enquanto Mateus e Marcos mamavam literalmente em dona Sebastiana, eu, além de não ter esse privilégio, ainda era obrigado a assistir à expropriação de meus bens – leite, bolacha, frutas e ainda a terça parte do salário de minha mãe (era essa quantia que dona Sebastiana cobrava pra cuidar de mim) – por parte do Estado, ou melhor, de dona Sebastiana, que os repartia “igualitariamente” entre os membros daquele regime.
Por isso, quando alguém vinha me falar de política, eu encurtava a conversa afirmando que conhecia bem os dois regimes e que detestava ambos com a mesma intensidade.

Dona Sebastiana tinha um vício, tão avassalador quanto a heroína: a televisão. Quando minha mãe me deixava em sua casa, antes mesmo das 7 horas da manhã, a televisão já estava ligada e permanecia assim até hora que minha mãe me buscava, isto é, por volta das 20 horas. Detalhe: dona Sebastiana sempre colocava o volume da televisão bem alto para que, de qualquer cômodo da casa, ela pudesse ser ouvida.

A compulsão de dona Sebastiana por televisão tinha um lado bom (pelo menos era o que eu acreditava quando era criança): todas as manhãs, Mateus, Marcos, Dona Sebastiana e eu assistíamos a uma sessão de desenhos animados.

Eu gostava de todos os desenhos, especialmente os de super-heróis. Eu sempre achava que era um deles. Assim, na segunda-feira eu era o Super-Homem; na terça eu me transformava no Homem de Pedra; na quarta eu era o The Flash; na quinta, Homem de Ferro; na sexta, o Thor... Graças a Deus nunca tive vontade de ser a Mulher-Maravilha.

Mas, o importante disso tudo é que, desde os 3 ou 4 anos, eu desejei ter super poderes. Muitas vezes sonhei que tinha adquirido um ou vários poderes; muitas vezes acordei acreditando no sonho, mas nunca falei isso pra ninguém. Afinal, não contar pra ninguém que se tem super poderes e manter sua identidade social em segredo são duas das condições pra se tornar um super-herói.

O fato é que, alguns anos mais tarde – quando eu já tinha entre 14 e 15 anos – eu adquiri um super poder. Não, não adquiri super força, nem a capacidade de voar; também não me tornava invisível, nem possuía raios, nada disso. Eu simplesmente adquiri a capacidade de ler o pensamento das pessoas, não qualquer pensamento, somente aqueles que de alguma forma estavam relacionados a mim.

A primeira vez que tal poder se manifestou eu estava na escola, cursava a 8ª série. Antes, porém, de contar como aconteceu, é preciso fazer uma pequena digressão...

Talvez o fato de meu pai ter nos traído e abandonado quando eu ainda estava no ventre se minha mãe tenha me marcado tão profundamente que jamais fui capaz de confiar ou acreditar em outro ser humano que não fosse minha mãe.

Por isso, desde criança minha companhia predileta sempre foi e continua sendo a solidão (solidão que, a partir da adolescência, muitas vezes esteve acompanhada de um livro). Então, partindo do princípio que a maioria das pessoas acredita na ideia de que o homem é um animal social, penso que sempre fui visto pelas outras pessoas como um estranho, um ser antinatural, antissocial.

O poder que adquiri confirmou essa minha hipótese. Como eu estava dizendo, a primeira vez que o meu poder de ler pensamentos se manifestou eu estava na escola. Foi assim: o sino do recreio tocou – com exceção de mim, todos os alunos estavam alvoroçados, porque faltavam apenas dois dias pra entrarmos de férias -, então, um grupo de “colegas” de sala, tendo à frente um garoto chamado Júlio, veio até minha cadeira e me chamou pra ir jogar futebol no pátio, mas pra não contrariar meu hábito de ficar só e também pra não ser ridicularizado diante de toda a escola ao apresentar minha absoluta falta de habilidade esportiva, recusei terminantemente ao convite. Porém, com minha recusa, desgostei vários colegas, especialmente Júlio, que havia me convidado com o propósito de retribuir a gentileza das colas que eu lhe dava. Foi nesse momento que aconteceu...

No exato instante em que recusei, Júlio olhou nos meus olhos, e, sem dizer uma palavra ou externar qualquer emoção, pensou:
– Esse imbecil deve achar que é melhor do que a gente só porque sabe matemática. Otário! Não tem nenhum amigo, só fica e anda sozinho, deve ter algum problema mental.

Li cada uma dessas palavras na mente de Júlio, que não insistiu, apenas virou as costas e saiu, seguido de todos os outros colegas.

Convivo com esse poder há aproximadamente 18 anos. Com o tempo aprendi a relevar o que eu lia nos pensamentos dos outros, afinal de contas, como já disse, desde o ventre materno venho nutrindo uma profunda descrença com relação aos seres humanos.

Assim, quem não espera nada não pode se decepcionar. Na verdade, durante esse tempo, tive até algumas boas surpresas, ao ler na mente de algumas pessoas, das quais eu nada esperava, considerações positivas ao meu respeito. No entanto, como você sabe, a exceção só confirma a regra. Diante disso, continuei desconfiando de todos e preferindo a solidão.

Ontem, porém, me aconteceu algo surpreendente: eu adquiri mais um poder. Assim como o outro, um poder, por assim dizer, psíquico. Você pode não acreditar, mas adquiri o poder de enxergar o passado da pessoa na qual eu estiver concentrando minha atenção. Eu simplesmente olho pra pessoa e num instante vejo, como numa televisão, todos os acontecimentos que foram determinantes na vida daquela pessoa. Vejo todos os eventos que contribuíram para que aquela pessoa estivesse ali, naquele lugar e naquele momento, em minha frente.

Fiquei um pouco impressionado quando aconteceu a primeira vez, por ver aspectos íntimos da vida alheia, mas a impressão logo se desvaneceu, afinal vivemos na era da invasão da privacidade. Se você quiser, posso relatar dois exemplos pra ilustrar...

Ontem, entrei num ônibus, por volta das 7 horas da noite, e me sentei em frente a uma mulher jovem, branca, cabelos castanhos claros, que vestia uma mini-saia jeans, uma blusa transparente preta, através da qual se podia ver seu sutiã igualmente preto, uma jaqueta jeans e calçava um sapato de salto cujas tiras subiam trançando-se por toda sua panturrilha. No primeiro instante, desviei o olhar, mas alguma coisa na fisionomia daquela mulher me chamou a atenção: era uma tristeza, uma amargura profunda em seu olhar.

Então, enquanto ela olhava pela janela do ônibus, fixei minha atenção em seu rosto por alguns segundos, e, como num passe de mágica, vi suceder retrospectivamente, diante dos meus olhos, do presente para o passado, imagens dos acontecimentos que tinham marcado indelevelmente a vida daquela mulher.

Assim, no começo deste ano – sei a data pois enxerguei um calendário na parede do quarto sujo onde a cena se desenrolava – a vi apanhar de um homem, que a xingava de vagabunda, retirava todo o dinheiro que havia em sua bolsa e dizia que ela estava tentando enganá-lo, passá-lo pra trás (supus que aquele homem era um cafetão); na sequência, a vi chorar compulsivamente sobre o túmulo de sua mãe (cuja campa trazia as datas 1952 – 1994), pedindo desculpas por não ter conseguido lhe dar uma vida melhor, nem pagar um tratamento médico adequado que pudesse tratá-la da tuberculose; depois a vi, com aproximadamente 13 anos, chorando escondida, por ter sido violentada por um tio; a vi, também, com 8 ou 9 anos de idade, assistir a seu pai agredir verbal e fisicamente sua mãe; por fim, já sensibilizado por tudo aquilo que tinha visto aquela mulher passar, chorei ao assistir a uma cena em que aquela mulher aparecia com 3 ou 4 anos chorando de fome até desfalecer e sua mãe desesperada sem ter nenhum alimento pra lhe oferecer.

Depois de assistir a todos aqueles quadros, pude entender toda a tristeza e a amargura que transbordavam dos olhos daquela mulher.

O outro exemplo que vou mencionar aconteceu hoje, enquanto eu caminhava pelo centro da cidade. Eram mais ou menos 10 horas, eu caminhava sem destino e num determinado momento resolvi atravessar a rua. Aguardei que o sinal fechasse e comecei a travessia, de repente um carro avançou uns 40 centímetros além da faixa de contenção, o que me fez parar imediatamente e olhar na direção do motorista daquele carro (diga-se de passagem, um carro importado, de luxo), que gesticulou como que pedindo desculpas pelo deslize. No entanto, ao olhar pra aquele homem, vi muito mais do que o seu pedido de desculpa em forma de gestos... vi todo o seu passado.

Era um homem de aproximadamente 40 anos, semblante tranqüilo e feliz, vestindo um terno preto, sobre uma camisa cinza escura e gravata prata. Na primeira cena que visualizei, aquele homem assinava os papéis de sua promoção à presidência de uma empresa multinacional (isso há 9 anos atrás, pois havia sobre a mesa um jornal que trazia na capa uma foto gigantesca do atentado de 11 de setembro); logo depois, vi aquele homem, feliz, desembarcar na Inglaterra onde se pós-graduaria em Administração; também o vi ganhar um carro novo como presente por sua aprovação no vestibular da Universidade Mackenzie de São Paulo; o vi, com aproximadamente 12 anos, se divertindo, encantado, na Disneylândia; por último, o vi, aos 3 ou 4 anos, em um quarto repleto – do chão ao teto – dos mais variados e caros brinquedos. Diante dessas imagens, compreendi a sua tranqüilidade e a sua expressão de felicidade.

É por causa desses poderes, doutor, que vim procurá-lo... Gostaria que, como homem de ciência, me dissesse se realmente possuo esses poderes – ou se tudo isso não passa de produto da minha imaginação...

E o psiquiatra, ajeitando-se na cadeira, calmamente perguntou:
– O senhor tem alguma objeção em passar alguns dias aqui conosco, para que possamos fazer alguns exames e conversar um pouco mais?
– Não tenho objeção! Posso ficar o tempo que for necessário, respondeu o homem.

Então, o médico chamou um enfermeiro e o pediu que instalasse aquele homem em um quarto. Antes que o enfermeiro saísse, o médico o pediu para que, depois que tivesse acomodado aquele homem, voltasse ao seu consultório pra receber algumas orientações.

Quinze minutos depois o enfermeiro retornou ao consultório e, de imediato, o médico lhe perguntou qual o sedativo mais forte que havia disponível naquele momento, o enfermeiro lhe respondeu e em seguida o médico prescreveu uma dose cavalar do sedativo em questão para o homem que acabara de sair de seu consultório e ser internado naquele Hospital Psiquiátrico.

Curioso, o enfermeiro então perguntou ao médico se ele já tinha algum diagnóstico. O médico respondeu que não, no entanto, justificou a aplicação daquela dose incomum de sedativo afirmando que o paciente estava bastante agitado, visto que andou de um lado para o outro dentro do seu consultório durante as 2 horas em que lá permaneceu.

– Além disso, acrescentou o psiquiatra, o paciente me disse que possui dois super poderes: o de ler mentes e o de ver o passado dos outros. Como se não bastasse, se apresentou a mim como sendo Ernesto Gonçalves de Oliveira, porém, em seu documento de identidade, que aqui está, consta o nome Simão Bacamarte.

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