Meu
nome é Ernesto Gonçalves de Oliveira. Nasci em uma família pobre, passei
algumas dificuldades, mas nunca passei fome – o que, neste mundo, significa ser
um privilegiado, um abençoado –, isso, graças ao esforço de minha mãe, que
sempre batalhou duro pra nos sustentar. Não conheci meu pai... ainda bem, pelo
menos assim não tive a oportunidade de realizar meu desejo de matá-lo.
Acho
melhor voltar um pouco mais no tempo e contar minha história do começo...
Minha
mãe e meu pai moravam em uma cidade do interior, no centro de um Estado do
interior. Se conheceram na praça (único ponto de encontro daquela cidade e de
muitas outras pelo Brasil a dentro, naquele tempo e até hoje) e lá mesmo se
apaixonaram e namoraram. Namoraram tanto e tão intensamente que minha mãe ficou
grávida de mim.
Por
temerem a reação de meus avós maternos, católicos ortodoxos da velha cepa,
minha mãe e meu pai resolveram fugir pra uma cidade grande. Então, juntaram
seus poucos pertences e numa madrugada, sem avisar, nem deixar cartas ou se
despedir, vieram pra cá. Isso aconteceu em meados de 1978.
Logo
que aqui chegaram, meu pai se empregou numa grande loja de móveis e eletrodomésticos
da época – Carlos Saraiva –, pois, segundo minha mãe, ter a capacidade de
vender era o máximo que se podia exigir da colossal inteligência de meu pai.
Por estar grávida e não conseguir trabalho fixo, minha mãe teve que se virar
fazendo bicos para a vizinhança: costurando, lavando roupas, cuidando de
crianças e faxinando casas, etc.
Cinco
meses depois de chegarem aqui e cinco semanas antes de eu nascer, meu pai,
talvez por já ter adquirido uma certa experiência no quesito fuga, resolveu
fugir com uma de suas clientes. E assim deixou minha mãe grávida, nas vésperas
do parto, sozinha, desamparada, cercada de pessoas desconhecidas, numa cidade
ainda mais desconhecida pra ela.
Posso
tranquilamente dizer que a fuga de meu pai foi o terceiro susto ou baque que
sofri – o primeiro foi quando minha mãe se desesperou ao perceber que estava
grávida de mim, o segundo foi quando, meu pai e minha mãe, resolveram fugir de
meus avós –, isso significa que eu já tinha adquirido três traumas e ainda
faltavam um mês e uma semana pra eu nascer.
No
dia 25 de dezembro eu nasci. Uma bela data pra se nascer, mas meu nascimento
não foi tão tranqüilo nem tão auspicioso quanto o do Cristo. Digo isso, pois,
não havia o “José”, nem os Três Reis Magos, tampouco ouro, mirra e incenso (ou
qualquer outro presente) e o mais importante: não havia nenhuma Estrela de
Belém ou luz anunciando o meu nascimento. Muito pelo contrário...
No
exato momento do parto, houve uma queda de energia e o Centro Cirúrgico onde eu
estava nascendo ficou às escuras. Naquele momento, naturalmente minha mãe ficou
apreensiva, nervosa, percebendo toda aquela frenética movimentação de médicos e
enfermeiros para que uma fonte de luz alternativa fosse providenciada (veja
bem: faltou energia, não na cidade, no bairro ou no hospital inteiro, mas
apenas – e o apenas é toda a diferença – no lugar onde eu nascia). Pronto! Mais
um trauma, o quarto. Inclusive, de agora em diante, deixo por sua conta essa
contagem.
Um
mês depois de me colocar no mundo minha mãe já estava à procura de um trabalho
que garantisse o nosso sustento, mas para isso foi obrigada a me deixar sob os
cuidados de uma vizinha, dona Sebastiana, porque morávamos na periferia e
naquela época não havia creches nas periferias (como se houvesse hoje).
Dona
Sebastiana era uma senhora de aproximadamente 35, 40 anos, um pouco gorda,
desalinhada, não era má, mas era negligente: a pachorra em forma de gente. Dona
Sebastiana tinha dois filhos pequenos: Mateus (1 ano) e Marcos (3 anos) – pra
mim Hitler e Mussoline, visto que a brincadeira predileta de ambos era me bater
pra me ver chorar.
Tudo
que minha mãe levava de alimento pra mim Dona Sebastiana dividia com seus
filhos. Começou dividindo o leite de minha mamadeira, depois dividiu minhas
bolachas e meus biscoitos, e dividindo continuou enquanto frequentei sua casa,
ou seja, por mais de oito anos.
Hoje
posso dizer que, desde muito cedo, recebi lições marcantes sobre política, pois
conheci na prática e na pele os dois principais regimes políticos do século 20.
O
Capitalismo me ensinou que a importância de um indivíduo está diretamente
relacionada ao seu poder de consumo, isso ficou evidente pra mim, pois minha
mãe havia sido obrigada a colocar minha vida nas mãos de uma desconhecida, para
que esse estranho sistema – no qual ter é ser – aceitasse nossa existência e
não nos “deletasse” e enviasse à lixeira da indigência, como freqüentemente faz
com milhões e milhões de seres humanos.
Por
outro lado, com o Comunismo aprendi que em qualquer regime político que se materialize
sempre vai haver os privilegiados, os parasitas, que “mamam” no Estado ou se
beneficiam do trabalho alheio. Era exatamente isso que acontecia na casa de
dona Sebastiana – que depois de adulto passei a considerar uma espécie de
território soviético ou cubano –, enquanto Mateus e Marcos mamavam literalmente
em dona Sebastiana, eu, além de não ter esse privilégio, ainda era obrigado a
assistir à expropriação de meus bens – leite, bolacha, frutas e ainda a terça
parte do salário de minha mãe (era essa quantia que dona Sebastiana cobrava pra
cuidar de mim) – por parte do Estado, ou melhor, de dona Sebastiana, que os
repartia “igualitariamente” entre os membros daquele regime.
Por isso, quando alguém vinha me falar de política, eu encurtava a conversa
afirmando que conhecia bem os dois regimes e que detestava ambos com a mesma
intensidade.
Dona
Sebastiana tinha um vício, tão avassalador quanto a heroína: a televisão.
Quando minha mãe me deixava em sua casa, antes mesmo das 7 horas da manhã, a
televisão já estava ligada e permanecia assim até hora que minha mãe me
buscava, isto é, por volta das 20 horas. Detalhe: dona Sebastiana sempre
colocava o volume da televisão bem alto para que, de qualquer cômodo da casa,
ela pudesse ser ouvida.
A
compulsão de dona Sebastiana por televisão tinha um lado bom (pelo menos era o
que eu acreditava quando era criança): todas as manhãs, Mateus, Marcos, Dona
Sebastiana e eu assistíamos a uma sessão de desenhos animados.
Eu
gostava de todos os desenhos, especialmente os de super-heróis. Eu sempre
achava que era um deles. Assim, na segunda-feira eu era o Super-Homem; na terça
eu me transformava no Homem de Pedra; na quarta eu era o The Flash; na quinta,
Homem de Ferro; na sexta, o Thor... Graças a Deus nunca tive vontade de ser a Mulher-Maravilha.
Mas,
o importante disso tudo é que, desde os 3 ou 4 anos, eu desejei ter super
poderes. Muitas vezes sonhei que tinha adquirido um ou vários poderes; muitas
vezes acordei acreditando no sonho, mas nunca falei isso pra ninguém. Afinal,
não contar pra ninguém que se tem super poderes e manter sua identidade social
em segredo são duas das condições pra se tornar um super-herói.
O
fato é que, alguns anos mais tarde – quando eu já tinha entre 14 e 15 anos – eu
adquiri um super poder. Não, não adquiri super força, nem a capacidade de voar;
também não me tornava invisível, nem possuía raios, nada disso. Eu simplesmente
adquiri a capacidade de ler o pensamento das pessoas, não qualquer pensamento,
somente aqueles que de alguma forma estavam relacionados a mim.
A
primeira vez que tal poder se manifestou eu estava na escola, cursava a 8ª
série. Antes, porém, de contar como aconteceu, é preciso fazer uma pequena
digressão...
Talvez
o fato de meu pai ter nos traído e abandonado quando eu ainda estava no ventre
se minha mãe tenha me marcado tão profundamente que jamais fui capaz de confiar
ou acreditar em outro ser humano que não fosse minha mãe.
Por
isso, desde criança minha companhia predileta sempre foi e continua sendo a
solidão (solidão que, a partir da adolescência, muitas vezes esteve acompanhada
de um livro). Então, partindo do princípio que a maioria das pessoas acredita
na ideia de que o homem é um animal social, penso que sempre fui visto pelas
outras pessoas como um estranho, um ser antinatural, antissocial.
O
poder que adquiri confirmou essa minha hipótese. Como eu estava dizendo, a
primeira vez que o meu poder de ler pensamentos se manifestou eu estava na
escola. Foi assim: o sino do recreio tocou – com exceção de mim, todos os
alunos estavam alvoroçados, porque faltavam apenas dois dias pra entrarmos de
férias -, então, um grupo de “colegas” de sala, tendo à frente um garoto
chamado Júlio, veio até minha cadeira e me chamou pra ir jogar futebol no
pátio, mas pra não contrariar meu hábito de ficar só e também pra não ser
ridicularizado diante de toda a escola ao apresentar minha absoluta falta de
habilidade esportiva, recusei terminantemente ao convite. Porém, com minha
recusa, desgostei vários colegas, especialmente Júlio, que havia me convidado
com o propósito de retribuir a gentileza das colas que eu lhe dava. Foi nesse
momento que aconteceu...
No
exato instante em que recusei, Júlio olhou nos meus olhos, e, sem dizer uma
palavra ou externar qualquer emoção, pensou:
– Esse imbecil deve achar que é melhor do que a gente só porque sabe
matemática. Otário! Não tem nenhum amigo, só fica e anda sozinho, deve ter
algum problema mental.
Li
cada uma dessas palavras na mente de Júlio, que não insistiu, apenas virou as
costas e saiu, seguido de todos os outros colegas.
Convivo
com esse poder há aproximadamente 18 anos. Com o tempo aprendi a relevar o que
eu lia nos pensamentos dos outros, afinal de contas, como já disse, desde o
ventre materno venho nutrindo uma profunda descrença com relação aos seres humanos.
Assim,
quem não espera nada não pode se decepcionar. Na verdade, durante esse tempo,
tive até algumas boas surpresas, ao ler na mente de algumas pessoas, das quais
eu nada esperava, considerações positivas ao meu respeito. No entanto, como
você sabe, a exceção só confirma a regra. Diante disso, continuei desconfiando
de todos e preferindo a solidão.
Ontem,
porém, me aconteceu algo surpreendente: eu adquiri mais um poder. Assim como o
outro, um poder, por assim dizer, psíquico. Você pode não acreditar, mas
adquiri o poder de enxergar o passado da pessoa na qual eu estiver concentrando
minha atenção. Eu simplesmente olho pra pessoa e num instante vejo, como numa
televisão, todos os acontecimentos que foram determinantes na vida daquela
pessoa. Vejo todos os eventos que contribuíram para que aquela pessoa estivesse
ali, naquele lugar e naquele momento, em minha frente.
Fiquei
um pouco impressionado quando aconteceu a primeira vez, por ver aspectos
íntimos da vida alheia, mas a impressão logo se desvaneceu, afinal vivemos na
era da invasão da privacidade. Se você quiser, posso relatar dois exemplos pra
ilustrar...
Ontem,
entrei num ônibus, por volta das 7 horas da noite, e me sentei em frente a uma
mulher jovem, branca, cabelos castanhos claros, que vestia uma mini-saia jeans,
uma blusa transparente preta, através da qual se podia ver seu sutiã igualmente
preto, uma jaqueta jeans e calçava um sapato de salto cujas tiras subiam
trançando-se por toda sua panturrilha. No primeiro instante, desviei o olhar,
mas alguma coisa na fisionomia daquela mulher me chamou a atenção: era uma
tristeza, uma amargura profunda em seu olhar.
Então,
enquanto ela olhava pela janela do ônibus, fixei minha atenção em seu rosto por
alguns segundos, e, como num passe de mágica, vi suceder retrospectivamente,
diante dos meus olhos, do presente para o passado, imagens dos acontecimentos
que tinham marcado indelevelmente a vida daquela mulher.
Assim,
no começo deste ano – sei a data pois enxerguei um calendário na parede do
quarto sujo onde a cena se desenrolava – a vi apanhar de um homem, que a
xingava de vagabunda, retirava todo o dinheiro que havia em sua bolsa e dizia
que ela estava tentando enganá-lo, passá-lo pra trás (supus que aquele homem
era um cafetão); na sequência, a vi chorar compulsivamente sobre o túmulo de
sua mãe (cuja campa trazia as datas 1952 – 1994), pedindo desculpas por não ter
conseguido lhe dar uma vida melhor, nem pagar um tratamento médico adequado que
pudesse tratá-la da tuberculose; depois a vi, com aproximadamente 13 anos,
chorando escondida, por ter sido violentada por um tio; a vi, também, com 8 ou
9 anos de idade, assistir a seu pai agredir verbal e fisicamente sua mãe; por
fim, já sensibilizado por tudo aquilo que tinha visto aquela mulher passar,
chorei ao assistir a uma cena em que aquela mulher aparecia com 3 ou 4 anos
chorando de fome até desfalecer e sua mãe desesperada sem ter nenhum alimento
pra lhe oferecer.
Depois
de assistir a todos aqueles quadros, pude entender toda a tristeza e a amargura
que transbordavam dos olhos daquela mulher.
O
outro exemplo que vou mencionar aconteceu hoje, enquanto eu caminhava pelo
centro da cidade. Eram mais ou menos 10 horas, eu caminhava sem destino e num
determinado momento resolvi atravessar a rua. Aguardei que o sinal fechasse e
comecei a travessia, de repente um carro avançou uns 40 centímetros além da
faixa de contenção, o que me fez parar imediatamente e olhar na direção do
motorista daquele carro (diga-se de passagem, um carro importado, de luxo), que
gesticulou como que pedindo desculpas pelo deslize. No entanto, ao olhar pra
aquele homem, vi muito mais do que o seu pedido de desculpa em forma de
gestos... vi todo o seu passado.
Era
um homem de aproximadamente 40 anos, semblante tranqüilo e feliz, vestindo um
terno preto, sobre uma camisa cinza escura e gravata prata. Na primeira cena
que visualizei, aquele homem assinava os papéis de sua promoção à presidência
de uma empresa multinacional (isso há 9 anos atrás, pois havia sobre a mesa um
jornal que trazia na capa uma foto gigantesca do atentado de 11 de setembro);
logo depois, vi aquele homem, feliz, desembarcar na Inglaterra onde se
pós-graduaria em Administração; também o vi ganhar um carro novo como presente
por sua aprovação no vestibular da Universidade Mackenzie de São Paulo; o vi,
com aproximadamente 12 anos, se divertindo, encantado, na Disneylândia; por
último, o vi, aos 3 ou 4 anos, em um quarto repleto – do chão ao teto – dos
mais variados e caros brinquedos. Diante dessas imagens, compreendi a sua tranqüilidade
e a sua expressão de felicidade.
É
por causa desses poderes, doutor, que vim procurá-lo... Gostaria que, como
homem de ciência, me dissesse se realmente possuo esses poderes – ou se tudo
isso não passa de produto da minha imaginação...
E
o psiquiatra, ajeitando-se na cadeira, calmamente perguntou:
– O senhor tem alguma objeção em passar alguns dias aqui conosco, para que
possamos fazer alguns exames e conversar um pouco mais?
– Não tenho objeção! Posso ficar o tempo que for necessário, respondeu o homem.
Então,
o médico chamou um enfermeiro e o pediu que instalasse aquele homem em um
quarto. Antes que o enfermeiro saísse, o médico o pediu para que, depois que
tivesse acomodado aquele homem, voltasse ao seu consultório pra receber algumas
orientações.
Quinze
minutos depois o enfermeiro retornou ao consultório e, de imediato, o médico
lhe perguntou qual o sedativo mais forte que havia disponível naquele momento,
o enfermeiro lhe respondeu e em seguida o médico prescreveu uma dose cavalar do
sedativo em questão para o homem que acabara de sair de seu consultório e ser
internado naquele Hospital Psiquiátrico.
Curioso,
o enfermeiro então perguntou ao médico se ele já tinha algum diagnóstico. O
médico respondeu que não, no entanto, justificou a aplicação daquela dose
incomum de sedativo afirmando que o paciente estava bastante agitado, visto que
andou de um lado para o outro dentro do seu consultório durante as 2 horas em
que lá permaneceu.
–
Além disso, acrescentou o psiquiatra, o paciente me disse que possui dois super
poderes: o de ler mentes e o de ver o passado dos outros. Como se não bastasse,
se apresentou a mim como sendo Ernesto Gonçalves de Oliveira, porém, em seu
documento de identidade, que aqui está, consta o nome Simão Bacamarte.
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