– Se um cego de nascença não faz ideia do que
seja a luz, isso não significa que ele possa concluir que a luz não exista. O
máximo que ele pode concluir é que a luz não existe para ele. E acho que essa
conclusão nós forçosamente deveremos aceitar. O que eu quero dizer é que mesmo
sendo um empresário, um capitalista, não posso, não quero e não devo
simplesmente concluir que as causas pelas quais os comunistas ou quaisquer
outros grupos de esquerda lutam não existam ou não sejam legítimas. Devem
existir e ter legitimidade para eles, por isso, acho que eles têm o direito de
lutar pelo que acreditam.
– Mas isso é um absurdo; um contrassenso,
André, logo você, um dos homens mais ricos do país, defendendo esses canalhas.
Eles querem pôr abaixo tudo que homens como você e eu construímos, eles querem
dividir enquanto nós queremos multiplicar. Eles são uma ameaça, meu caro,
justamente porque defendem ideias absolutamente opostas as que sustentam nossas
posições e privilégios.
– Eu sei, Olavo! Mas, no meu entender, não é
um contrassenso o que estou afirmando. Contrassenso é pressupor que o limite de
tudo e de todas as coisas são, única e exclusivamente, as nossas
idiossincrasias, aquilo em que acreditamos e defendemos. Também é um equívoco,
meu amigo, você afirmar que estou defendendo os comunistas ou os de esquerda,
quando na verdade estou defendendo um direito universal. Para ser mais
específico, estou defendendo o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que assegura que, abre aspas: Toda pessoa tem direito à liberdade de
opinião e expressão. Fecha aspas.
– Além disso, Olavo, da mesma forma que
defendo o direito dos outros lutarem pelo que acreditam, defendo o nosso
direito de lutar pelo que acreditamos e lutar para preservar o que
conquistamos. Afinal, a mesma Declaração dos Direitos Humanos garante que, abre
aspas novamente: Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com
outros e que ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade. Fecha
aspas. – enquanto falava, André mantinha um indisfarçável tom de ironia – E o
melhor de tudo, como você bem sabe Olavo, é que nós nem mesmos precisamos lutar
com nossas próprias mãos para nos defender e defender nossas propriedades e
nossos interesses, pois temos a polícia, o exército e todas as instituições
armadas ao nosso serviço. Além do mais, Olavo, essa discussão e esse medo já
estão caducos, não estamos mais na década de 60 – concluiu André.
– Confesso, André, que a princípio fiquei um
pouco preocupado com a sua declaração, mas agora, depois dessa explicação a la
Schopenhauer, respiro bem mais aliviado e aproveito para propor um brinde... um
brinde ao Direito, que, como o Arcanjo Gabriel, nos defende, lutando contra
todo o mal, desde os ladrões de lenha até os insaciáveis leões. Tim-tim! – propôs
cinicamente Olavo.
– Tim-tim! – brindaram satisfeitos e
apaziguados todos os empresários magnatas e seus acompanhantes que
compartilhavam a mesa da Presidência do Rotary Club do Rio de Janeiro, durante
aquela confraternização do Natal de 1988, que transcorreu sem nenhum outro
incidente. Olavo, que era o presidente do Rotary naquele momento, estreitou
ainda mais os laços de amizade com André, depois daquele mal entendido, como
ele posteriormente nomeou aquele episódio.
É verdade que, no fundo, o orgulho de Olavo
saiu ferido daquele embate, mas, como ele mesmo costumava afirmar publicamente,
os interesses econômicos devem suplantar quaisquer sentimentalidades. Desde que
lucrasse alguma coisa, Olavo estava pronto a considerar que o orgulho era um
sentimento medieval, que anacronicamente brotava e medrava em algumas almas
desprovidas de razão e senso prático. E foi exatamente essa a impressão que
Caio, filho de André, teve de Olavo e quis compartilhar com o pai, enquanto
faziam o caminho de volta para casa:
– Pai, sinceramente, não gosto do Olavo. Acho
que ele é um homem insensível, extremamente materialista, baixo,
interesseiro... parece capaz de fazer qualquer coisa por dinheiro e poder.
Tenho a forte impressão de que Olavo é daquele tipo de homem que nunca teve e
jamais terá princípios, ética, valores morais. Para mim, pai, Olavo é um homem
desprezível, repugnante. Apesar disso – continuou Caio, depois de alguns
instantes de reflexão –, para desencargo de consciência, devo dizer que, como
Olavo, achei muito estranho a forma como o senhor defendeu os comunistas.
André escutou atenta e silenciosamente todo o
comentário do filho, no entanto, nos primeiros minutos que se seguiram, não
proferiu nenhuma palavra, apenas parecia meditar. Caio já começava a ficar apreensivo,
pensando ter magoado o pai, quando este rompeu o prolongado silêncio:
– Pedro.
– Pois não, senhor – respondeu o chofer.
– Por favor, dirija em direção à Tijuca –
solicitou André.
– Imediatamente, senhor – atendeu Pedro.
Enquanto Caio ia conjeturando os motivos da
mudança repentina de rota, André continuava a ruminar algumas ideias e a
ponderar as opiniões que o filho acabara de emitir. André sabia que o máximo de
realidade que seu filho conhecia era aquela enlatada e apresentada em conta
gotas e de forma palatável pelo Jornal Nacional. A bem da verdade, o mais
próximo que Caio havia chegado da realidade foi durante as leituras de A
Insustentável leveza do ser e do Contraponto. Apesar dos vinte anos, Caio era
uma criança, ingênua e sonhadora, não conhecia o mundo de verdade, nem a
verdade do mundo, aquela mesma que Olavo professava; não conhecia a fria e
cruel realidade, sua vida, até aquele momento, havia sido um holograma, uma
ilha de fantasias, construída a custo de muito dinheiro.
– Senhor, chegamos. Estamos na Praça Sans
Penha – anunciou Pedro.
– Pode dar a volta na praça, Pedro, e parar
do outro lado, por favor – orientou André.
– Aqui está ótimo, Pedro.
Enquanto Pedro estacionava o carro ao lado de
uma guarita da polícia, André tirou o paletó, a gravata, a carteira e o
relógio, e recomendou ao filho que fizesse a mesma coisa. Em seguida, André
retirou da carteira um maço de notas e colocou no bolso da calça. Era
aproximadamente duas horas da manhã quando desceram do carro e cumprimentaram
os policiais de plantão. Caio tentava disfarçar, mas, apesar disso, sua
fisionomia repercutia o medo que sentia. O subúrbio para ele era sinônimo de
criminalidade. Sem conseguir se conter, Caio resolveu perguntar:
– Onde estamos indo, pai?
– Encontrar com a verdade, meu filho –
respondeu laconicamente André.
Caio não entendeu a resposta e resolveu
aguardar estoicamente o desenlace daquele mistério. Seguiram andando por uma
rua paralela à praça por uns quatrocentos metros, até que chegaram ao pé de um
morro. André parou, olhou solenemente para cima, virou-se para Caio e disse com
a voz meio embargada:
– Esse é o Morro do Salgueiro, meu filho,
morei aqui por vinte e quatro anos...
É difícil precisar qual das informações
provocou maior espanto e alvoroço em Caio, se a informação de que aquele era o
famoso Morro do Salgueiro – famoso na Marquês de Sapucaí, mas sobretudo nas
colunas policiais – ou se a informação de que o pai havia morado naquele covil.
Sentindo o coração palpitar e as mãos tremerem, Caio tartamudeou:
– Ma... mas, pai, você nunca me contou
isso...
– Você nunca perguntou, nunca quis saber da
minha história. Por que eu haveria de contar? – redarguiu melancolicamente
André, que depois de alguns instantes continuou – Venha, acho que chegou a hora
de contá-la a você – e começaram a subir o morro, André com convicção, Caio com
receio. Nos primeiros duzentos metros, a ladeira era larga e reta, calçada de
paralelepípedos, depois disso, fazia uma curva para a esquerda e,
gradativamente, ia afunilando até se transformar em uma viela. Enquanto
caminhavam, André ia falando:
– Eu nasci aqui, meu filho. Não conheci meu
pai e perdi minha mãe quando eu tinha treze anos. Quando me vi sozinho, olhei à
minha volta e só enxerguei dor e desgraça. A miséria, a fome e a podridão eram
minhas vizinhas, muitas vezes flertei com elas. Comparado com aquela época,
hoje esse morro é um paraíso.
No momento em que abandonaram a viela em que
estavam e viraram numa outra à direita, viram um homem – que até então estava
sentado numa lata de tinta em frente a um barraco do lado esquerdo da viela,
com um fuzil a tiracolo – levantar, empunhar a arma e perguntar:
– Preto ou branco?
André continuou a caminhar tranquilamente se
aproximando do homem do fuzil, enquanto Caio, confuso e hesitante, procurava
decifrar o significado daquela pergunta. Quando, alguns passos adiante, André e
Caio passaram ao lado de uma lâmpada acesa, o homem do fuzil abaixou a arma e
exclamou:
– Pô, doutor, é o senhor, me desculpa, eu
pensei que fosse um cliente...
– Tudo bem, rapaz – respondeu André, com
certa familiaridade que intrigou Caio; se dirigindo ao homem do fuzil, André
continuou o diálogo:
– Será que tem algum problema se eu subisse
pra mostrar pro meu filho o lugar onde morei e a vista lá de cima?
– Não, doutor, sem problema, o senhor tá em
casa. A comunidade deve muito ao senhor. Se não fosse o senhor a gente não
tinha nem a escola nem o posto de saúde, porque o senhor sabe que se dependesse
do governo... mas, espera um pouco, doutor, que vou comunicar o patrão e chamar
um vapor pra acompanhar o senhor – respondeu o homem, sacando um rádio e dando
alguns passos para trás.
Passados uns cinco minutos, surgiu de um dos
becos próximos um garoto negro de uns treze anos, que vestia apenas bermuda e
chinelos. Quando o garoto se aproximou, o homem do fuzil se virou para André e
disse:
– O patrão disse que o senhor pode subir
tranquilo doutor. Esse moleque aqui vai acompanhar o senhor, o nome dele é Davi
e o meu, doutor, é Roberval, mas todo mundo aqui me chama de Zumbi.
– Obrigado, Zumbi – agradeceu André, enfiando
a mão no bolso e, ato contínuo, estendendo-a para cumprimentar Zumbi, com duas
notas de dez mil cruzados discretamente camufladas entre os dedos, para não
constranger Zumbi.
– Pô, doutor, brigado, não precisava – disse
Zumbi.
– Por nada Zumbi, é pra você comprar um
presente pro seu filho. Você tem filho Zumbi? – quis saber André.
– Tenho, doutor. Tenho três pirralhos, dois
meninos e uma menina – satisfez Zumbi.
– Então, toma aqui mais dez mil – ofereceu André.
– Poxa, doutor, muito obrigado, valeu mesmo.
– Então, nós vamos subindo, Zumbi – disse
André.
– Vai na paz, doutor! Oxalá acompanhe o
senhor e te defenda de toda coisa ruim – reiterou Zumbi.
Já haviam dado alguns passos, quando ouviram
Zumbi chamar:
– Doutor...
– Pois não, Zumbi – respondeu André.
– Feliz Natal pro senhor e pra toda sua
família, doutor – desejou Zumbi.
– Muito obrigado Zumbi e feliz Natal pra você
e pra sua família também – retribuiu André.
Continuaram a subida. Davi seguia na frente desempenhando
a dupla função de batedor e guia, embora André conhecesse o caminho. Depois de
uns vinte minutos de caminhada, por entre becos sujos e vielas sinuosas, sempre
em aclive, André chamou Davi e pediu que parasse por alguns minutos, para que
ele pudesse mostrar algo ao filho.
André olhou meditativamente para a margem
direita da viela em que subiam. Havia um amontoado de barracos, sendo
impossível distinguir o fim de um barraco e o começo do outro. Se fosse
construído na Espanha, esse conjunto de barracos, devido à irregularidade de
suas linhas estruturais, facilmente seria tomado por uma obra de Gaudi.
Em alguns desses barracos porejava uma água suja e fedida, que nutria uma
cortina de musgo viçoso que adornava os rodapés.
– Foi naquele barraco ali, meu filho – André
apontava o barraco mais à esquerda do conjunto – que vivi os meus primeiros
vinte e quatro anos, dos quais os onze últimos, absolutamente sozinho no mundo
– disse André, profundamente emocionado. Caio olhou o barraco e não soube o que
dizer.
Instantes depois, André recomeçou a andar,
Davi entendeu a mensagem e retomou a dianteira, caminhando ladeira a cima.
Caio, ao lado do pai, ia observando e refletindo sobre aquele festival de
horrores, ao mesmo tempo em que tentava conciliar aquela nova faceta concreta e
desmitificada de seu pai à imagem idealizada que havia feito dele. Trinta e
cinco minutos depois o grupo chegava ao topo do Morro da Tijuca. Do lado
esquerdo da trilha mais pisada que seguia mato adentro, havia uma grande rocha
granítica. André, seguido de Caio, deu a volta na rocha – sua velha amiga do
passado, conselheira e consoladora nas horas mortas – e foram acomodar-se em
sua crista. Davi deu alguns passos na direção oposta a que André e Caio haviam
tomado e discretamente se ocultou na sombra. Passados alguns minutos, já
refeito da caminhada, André retomou a fala iniciada em frente ao barraco:
– Quando se tem por perspectiva a miséria, o
crime ou a morte, Caio, o sujeito vê, pondera e julga as coisas e as pessoas de
uma maneira um pouco diferente da sua, meu filho. Não podemos julgar as pessoas
tendo como fiel da balança única e exclusivamente os princípios que adotamos.
Se procedermos assim, não levando em conta determinadas circunstâncias não
seremos apenas péssimos juízes, seremos piores que isso... seremos inquisidores
– disse André, mansa mas convictamente.
– E não vá pensar que vim até aqui e que
estou falando essas coisas com o propósito de defender o Olavo. Muito pelo
contrário, concordo com boa parte do que você disse sobre ele, mas por outros
motivos que não vêm ao caso no momento – André fez uma pausa, respirou
profundamente olhando o horizonte e prosseguiu:
– Na verdade, meu filho, nós viemos até aqui
para que eu pudesse me defender de forma mais contundente – esclareceu André.
– Mas, pai, de tudo que falei, eu só me
referi ao senhor quando disse que achava estranho o senhor defender os
comunistas – argumentou Caio, meio sem entender o que seu pai queria dizer.
– Não, meu filho, mesmo sem saber, quando se
referiu a homens que por dinheiro sacrificam princípios éticos e morais, você
estava se referindo a mim – disse André, em tom de confissão.
– Não estou entendendo, pai... considero o
senhor um modelo de homem ético e probo, foi justamente o senhor que com lições
e exemplos me ajudou a construir e consolidar os princípios que hoje defendo,
pai – garantiu Caio, confuso e emocionado.
– É meu filho... sinto demolir suas ilusões a
meu respeito, mas é a pura verdade. Apenas as circunstâncias me diferenciam do
Olavo, se não as levarmos em conta, serei uma criatura tão repugnante quanto
ele – declarou André honestamente.
Um silêncio pesado e angustiante pairou no
ambiente. Caio cismava dolorosamente, num momento se acalmava e tentava juntar
os cacos de suas concepções, mas no momento seguinte se desesperava e se
martirizava com a expectativa do que seu pai ainda tinha para lhe revelar.
Enquanto isso, ao seu lado, absorto, André hauria forças para continuar sua
confissão, inspirando profundamente o ar úmido e fresco que vinha da Floresta
da Tijuca e contemplando o céu estrelado. Dez minutos haviam passados quando
André retomou a história:
– Minha mãe, Caio, era uma mulher muito
trabalhadora. Faxinava casas por toda Tijuca; lavava e passava para fora. Dia e
noite a vi subir e descer essas ladeiras com trouxas de roupa na cabeça, numa
azáfama sem fim – André suspirou tristemente e continuou – Minha mãe era muito
bonita, mas não tinha tempo para pensar em si mesma e se cuidar. Ela precisava
garantir minha sobrevivência. Algumas vezes, vi um homem bem arrumado rondar
nossa casa e conversar com ela. Me lembro com muita nitidez dela balançando a
cabeça negativamente, rejeitando o dinheiro que ele oferecia, não entendia o
porquê da rejeição e um dia cheguei a perguntar para ela e ela respondeu
humildemente: “É dinheiro sujo meu filho, eu não posso aceitar”. Tempos mais
tarde descobri que aquele homem era um cafetão. Apesar da dignidade e dos
trabalhos incessantes de minha mãe, vivíamos na miséria. Muitas vezes passei
fome... lembro de algumas vezes à noite, quando eu reclamava de fome, minha mãe
sentava ao meu lado, punha minha cabeça em seu colo, acariciava meus cabelos e
dizia carinhosamente: “Dorme que passa, meu filho”. Não passava Caio, às vezes
eu nem dormia e nesses momentos de fome e angústia eu – ainda uma criança –
jurei para mim mesmo que iria sair e tirar minha mãe daquela situação.
André chorou em silêncio por alguns minutos,
organizando as memórias e aquietando a alma e o coração. Tomou fôlego e mais
uma vez rompeu o silêncio:
– Todo dia minha mãe acordava às quatro horas
da manhã para lavar as roupas que as vizinhas lhe enviavam ou que tinha
recolhido na véspera. Ela lavava a mão, ensaboava, esfregava, torcia, batia,
enxaguava tudo a mão e, por isso, ela ficava com a roupa e o corpo todo
molhado, até que o sol viesse e lhe secasse a roupa no próprio corpo. Muitas
vezes, para dar conta do trabalho prolongava essa labuta até nove horas da
noite. Depois de muitos anos nessa triste rotina, minha mãe começou sucumbir. A
princípio, se alimentava pouco e tossia esporadicamente; dois meses depois,
tossia ininterruptamente, escarrava sangue e definhava: era tuberculose. Sem
tratamento, a doença evoluiu rapidamente e, a olhos vistos, minava as forças de
minha mãe. Ela ainda resistiu três meses. Durante esse período, graças à
comiseração dos vizinhos que garantiram o indispensável para nossa alimentação,
eu pude passar as tardes e as noites ao lado da cama de minha mãe, pois as
manhãs ela obrigava que eu as passasse na escola. Sempre dizia que a escola era
minha única chance de salvação e que, independente do que acontecesse, eu
deveria continuar na escola. Muitas vezes me fez prometer isso: “– Promete, meu
filho, por tudo que é mais sagrado?” “– Prometo!”, eu respondia. “– Promete
pela vida da sua mãe?” – insistia ela. “– Prometo, mãe. Juro por Deus” – eu
respondia, sabendo que ela preferia juramentos à promessas.
– Numa daquelas noites de sofrimento e
aflição que passei ao lado dela, nos momentos finais de sua vida, minha mãe me
contou a história de meu pai. Segundo ela, ele era um operário honesto e
honrado, que trabalhava de sol a sol, acreditando cegamente na filosofia
trabalhista de Getúlio Vargas. Entretanto, apesar do esforço de ambos, não
prosperavam, mas não se rendiam e iam se arrastando na vida.
– Um dia, dois homens – ladrões conhecidos
que moravam aqui no morro – vieram até a casa deles e tentaram convencer meu
pai a participar de um assalto com eles, diziam que precisavam de um homem
forte e que com o produto do roubo os três conseguiriam viver por no mínimo
dois anos no bem-bom – meu pai recusou, segundo minha mãe, argumentando que não
podia participar porque era devoto de Santo Expedito e também porque que não
achava certo tirar nada dos outros.
– Sem saber se por despeito ou por medo de
serem denunciados, minha mãe disse que dois dias depois de falarem com meu pai,
aqueles homens o mataram e deixaram seu corpo na porta do barraco onde ela e
meu pai moravam, com um bilhete preso entre os dedos de umas das mãos, no qual estava
escrito com uma letra estranha: “Agradeço a Santo Expedito, pela graça
recebida. Se abrir o bico, morre também”.
– O mais triste e irônico desse epsódio é que
aquele dia era pra ser um dia feliz, pois minha mãe esperava ansiosamente a
chegada de meu pai para contar que estava grávida – mais uma vez André precisou
se recompor – Não é fácil para mim, lembrar e contar essa história. Foram
tempos muito difíceis. Dias depois de me contar essa história e em meio a muita
dor e agonia, minha mãe morreu – discretamente André passou a mão nos cantos
dos olhos, suspirou e continuou:
– Assim, meu filho, a história do meu pai, a
da minha mãe, da qual tomei parte, e outras que conheci de muito perto naquela
época, me fizeram crer convictamente que algumas pessoas nascem fadadas à
miséria e, sinceramente, eu não queria essa sina para mim. Tudo indicava que o
meu destino seria semelhante ao dos meus pais, mas eu estava disposto a
contrariá-lo a qualquer preço.
– Desde os sete anos eu fazia uns bicos para
ajudar minha mãe. Nas feiras da Tijuca, em troca de algumas moedas, eu
carregava, em um carrinho feito de madeira e rolamentos, as compras das donas
de casa que moravam na redondeza; com o mesmo carrinho, eu transportava
material de construção morro acima e morro abaixo; carregava água, pois muitos
barracos na época não tinham; descia o morro para comprar gás ou qualquer outra
coisa para as vizinhas e tornava a subir carregado. Enfim, fazia tudo que uma
criança, entre os sete e os treze anos, podia fazer para ganhar uns trocados,
aliviando a carga da minha mãe.
– Depois que ela morreu, eu só podia contar
comigo mesmo. Até os quinze anos eu continuei fazendo esses e outros bicos para
me sustentar, e a miséria teimava em cruzar meu caminho. Voltei a passar fome,
só que agora sem os carinhos da minha mãe para amenizar. Chorei, desesperei,
amaldiçoei Deus e o destino, renovei o juramento de fazer qualquer coisa para
sair daquela situação e continuei a estudar, cumprindo o juramento que havia
feito à minha mãe.
– Quando completei dezesseis anos ganhei o
primeiro presente da minha vida: um emprego de verdade. Uma vizinha de barraco,
que era copeira num grande banco, me indicou para uma vaga de faxineiro. Fiz
uns testes, passei por um período de experiência e, graças a Deus, fui contratado;
isso foi em 1960.
Finalmente, eu teria um salário no fim do
mês. Sempre trabalhei com dedicação, qualquer atividade que me atribuíssem eu
procurava desempenhá-la o melhor possível. Assim, rapidamente me destaquei, e
em seis meses eu já era o encarregado da limpeza. Embora tenha dificultado e
atrapalhado algumas vezes, o trabalho não me impediu de continuar os estudos.
– Dois anos se passaram sem grandes
alterações na minha vida. Apesar disso, frequentemente eu acordava
sobressaltado no meio da madrugada. Desde que minha mãe morreu, eu tinha um
pesadelo recorrente. Nele, eu a via caminhando de braços abertos em minha
direção, mas à medida que se aproximava sua imagem ia se convertendo em uma
criatura descarnada, com braços alongados, que se moviam como patas de aranha,
tentando me apanhar, para completar o quadro sinistro, a criatura me chamava
pelo nome, enquanto vomitava sangue aos borbotões. Para mim, aquela era a
imagem da miséria; acho que aquela foi a forma que meu cérebro conseguiu
encontrar para amenizar ou dissipar as dolorosas impressões gravadas em suas
áreas mais recônditas, me mantendo alerta e mentalmente saudável.
– No início de 1963, em reconhecimento aos
bons serviços que prestei e, também, segundo o gerente do banco, aos meus
esforços no sentido de me aperfeiçoar – eu tinha acabado de concluir o colegial
e ser aprovado para Economia na Federal Fluminense – fui promovido para
trabalhar no departamento de compensação de cheques, onde fiquei por dois anos.
Em meados de 65, alguns funcionários do
banco, sindicalistas ativos, foram presos e, consequentemente, demitidos. Para
ocupar o lugar de um deles, caixa, fui mais uma vez promovido – André olhou na
direção em que tinha visto Davi se ocultar, no momento em que chegaram ali, viu
um discreto movimento entre as sombras e chamou a meia voz:
– Davi.
Solícito ou interessado em colher os frutos que a prodigalidade de André
distribuía, Davi saiu da sombra, caminhou em direção ao pé da rocha em que
estavam sentados André e Caio, e perguntou:
– O senhor chamou?
– Chamei sim, Davi. Tem como você conseguir
um pouco de água para gente beber?
– Tem sim senhor! – atendeu Davi.
– Estou morrendo de sede e você deve estar
também. O Caio vai levar um dinheiro aí pra você comprar a água pra nós e se
você quiser pode comprar também alguma coisa pra você comer – André tirou uma
nota de mil cruzados passou-a para o filho, que desceu para entregá-la a Davi.
Davi pegou o dinheiro e foi cumprir a missão. Quando Caio novamente se sentou
ao seu lado, André continuou:
– Como eu estava falando, com a prisão de
alguns funcionários do banco, fui promovido a caixa. Apesar do relativo
progresso, eu continuava a morar aqui no morro e a ter aqueles horríveis
pesadelos. Morava aqui para não ter que pagar aluguel em outro lugar e
continuava a ter aqueles pesadelos, porque não é fácil exorcizar o demônio da
miséria.
– Eu precisava pensar e fazer algo que
garantisse minha independência financeira, mas me faltava coragem e sobrava
escrúpulo para tentar qualquer coisa mais audaciosa ou menos digna. Vivia nesse
cruciante dilema, até que um dia tive uma ideia.
Não, não foi apenas uma ideia... foi muito
mais que isso... foi a minha salvação! – ao se lembrar desse epsódio, os olhos
de André brilharam mais intensamente, sua voz adquiriu uma entonação diferente,
mais grave, parecia estar em êxtase. Caio percebeu a transformação e se
aproximou mais do pai. André estendeu os braços sobre os ombros do filho e
continuou:
– A ideia era simples, consistia em dividir
com Deus ou com a sorte a responsabilidade pelo meu destino, pelo meu futuro.
– A partir do momento em que tive a ideia, 6
de junho de 1966, todo dia eu cumpria o mesmo ritual: chegava ao banco mais
cedo que meus colegas de caixa e ocupava o guichê mais à esquerda, junto à
parede. Desse modo, eu ficava tendo apenas um vizinho de guichê, que geralmente
era um sujeito chamado Adão Ladd, meu melhor amigo naquela época. Depois que o
banco abria, à medida que as movimentações bancárias iam sendo efetuadas e que
o dinheiro do meu caixa aumentava significativamente, eu ia fazendo maços de
notas grandes, para dar menos volume, e discretamente ia jogando esses maços no
cesto de lixo do guichê que eu ocupava. A partir daí, eu começava a rezar,
torcer, implorar, para que o banco fosse assaltado. Se isso acontecesse, eu
poderia ficar com o dinheiro que eu havia camuflado em meio ao lixo; se não
acontecesse, obviamente, também de forma discreta, eu pegava o dinheiro que
havia escondido no cesto, recolocava no caixa, que depois de conferido e fechado
era levado para tesouraria, e lá reconferido.
– Na última etapa do ritual diário, depois
que reconferiam o caixa e nos liberavam, eu recolhia o saco de lixo do meu
guichê – sob o pretexto de ajudar o pessoal da limpeza, afinal de contas eu
sabia por experiência própria o quanto era árduo aquele trabalho – e jogava-o,
ao sair, numa grande caçamba de lixo, que ficava ao lado da saída, na parte de
trás do banco.
Nesse momento, Davi reapareceu; trazia uma sacola numa mão e uma botija de
barro na outra. Sem cerimônia, subiu na pedra em que André e Caio estavam e
disse:
– O único lugar aqui perto que fica aberto
até essa hora é o bar do Caçapa e lá ele não vende água, então, comprei uma
Coca grande e uma cerveja. Depois, passei lá em casa, peguei esse pote d’água e
uns copos, por isso demorei – explicou Davi, tirando os copos, as bebidas e um
abridor. Em seguida, enfiou a mão no bolso da bermuda e tirou o troco para
devolvê-lo a André, que o antecipou dizendo:
– O troco é seu.
– Valeu! – agradeceu Davi.André bebeu dois
copos d’água e se serviu da cerveja, enquanto Davi e Caio secavam a garrafa de
Coca. Em seguida, André disse a Davi que se quisesse ir embora podia ir
tranquilo.
– Não posso, tô no meu horário de trabalho e
meu trabalho agora é acompanhar o senhor – respondeu Davi.
– Tudo bem, Davi. Você tem irmãos? –
especulou André.
– Tenho dez – respondeu sorrindo
malandramente Davi, lembrando do agrado que André havia feito ao Zumbi.
André e Caio entreolharam-se e riram compreendendo a sagacidade e intenção de
Davi. Porém, antes que o levassem a mal, Davi remediou:
– Tô brincado, falei que tinha dez porque se
o senhor deu dez mil cruzados para cada filho do Zumbi, imagina quanto eu não
ia ganhar... – todos caíram na gargalhada.
– Na verdade – continuou Davi, depois de um
tempo – só tenho uma irmã mais nova, de seis anos.
– Então, Davi, vou te dar o mesmo tanto de
dinheiro que dei para o Zumbi, mas você vai dar a metade para sua mãe e a outra
metade você divide com sua irmã, pode ser?
– Acho que o senhor não entendeu o que eu
disse. Eu tenho só uma irmã mais nova, não tenho mais pai nem mãe, eles
morreram, eu que cuido da minha irmã – respondeu Davi orgulhosamente.
– Então, vou te dar mais do que eu dei pro
Zumbi e também vou te dar um emprego, se você quiser – disse André, estendendo
a mão para Davi em sinal compromisso. Depois disso, André enfiou a mão no
bolso, tirou todo dinheiro que havia lá e passou para Davi, e disse:
– Segunda-feira eu venho aqui para vermos o
negócio do emprego.
– Brigado! – agradeceu Davi – Agora, vou
voltar pro meu posto – disse Davi descendo a pedra. Quando se viram só, André
questionou:
– Onde eu parei mesmo?
– Você estava descrevendo o ritual que
cumpria diariamente, desde o dia em que teve a ideia – respondeu Caio.
– Então... por mais de seis meses realizei
religiosamente aquele ritual: escondia o dinheiro no cesto, devolvia o dinheiro
para o caixa, recolhia o saco de lixo do meu cesto e jogava na caçamba. Até que
um dia - 26 de dezembro de 1966 - minha cúmplice, a sorte, resolveu entrar em
ação.
– Naquele dia, quase no final do expediente,
um grupo revolucionário invadiu o banco, anunciando o assalto. Eram sete
pessoas, seis homens e uma mulher, todos muito bem armados. Dominaram com
facilidade os dois guardas do banco, algemando-os a uma pilastra. Por ser uma
segunda-feira, ainda havia muitos clientes no banco. O homem que parecia ser o
líder do grupo proclamou em alto e bom som para clientes e funcionários: “–
Mantenham a calma! Nós não queremos o dinheiro de vocês, queremos apenas o dinheiro
do banco, pois esse tipo de instituição conspira contra o Brasil e os
brasileiros, remetendo seus lucros, obtido por meio de juros abusivos, para o
exterior, principalmente para os Estados Unidos, que não por acaso tem uma ave
de rapina como emblema nacional. Sim, companheiros! Nós somos comunistas e
aqui, neste momento, estamos lutando contra a opressão e a exploração
internacional, estamos lutando pela soberania nacional e pela liberdade de cada
um de vocês”.
– Enquanto o homem fazia muito
compassadamente aquele discurso, os outros integrantes do grupo, extremamente
calmos e coordenados, executavam o assalto. Dois deles, um homem e uma mulher,
limpavam os caixas; três renderam o gerente, obrigaram-no a abrir o cofre e o
esvaziaram; o sétimo homem vigiava a entrada, dando cobertura. O final da fala
do homem determinou o final da ação do grupo. Aquele não foi apenas um discurso
político, foi o cronômetro da ação. Com vários malotes cheios de dinheiro, o
grupo saiu do banco pela porta dos fundos, onde dois carros os esperavam,
conforme nos informaram depois.
– Alguns minutos depois de acabado o assalto,
a polícia chegou, e com ela uma atmosfera de tensão muito maior do que a que
havia acompanhado o assalto. Vários policiais, tanto fardados quanto à paisana,
andavam nervosamente de um lado para outro, encarando os funcionários como se
fôssemos os próprios assaltantes. Aparentemente, suspeitavam de tudo e
desconfiavam de todos.
– Concluídas as primeiras averiguações, o
delegado que cuidava do caso começou a interrogar todos os funcionários, na
suposição de que algum pudesse ter fornecido informações aos assaltantes.
Quando chegou a minha vez o delegado me fez uma série de perguntas: onde eu
morava; se por acaso eu estava envolvido com comunistas; se eu havia
reconhecido algum dos assaltantes; se eu conseguiria fazer um retrato falado de
algum dos assaltantes; além dessas, o delegado me fez muitas outras perguntas,
sendo que tudo que eu respondia era anotado pelo escrivão que o acompanhava.
Assim que terminou de me interrogar o delegado me dispensou, não sem antes me
advertir de que se precisasse de um novo depoimento ou mais esclarecimentos
mandaria me chamar. Respondi que estaria à disposição dele sempre que fosse
necessário.
– Durante cada segundo daquele
interrogatório, eu só pensava no dinheiro que estava na minha lixeira e
angustiado temia não só perdê-lo, mas perder o pouco que eu havia conquistado
até aquele momento e o pior de tudo, temia perder minha liberdade.
– À medida que íamos sendo dispensados pelo
delegado, o gerente do banco nos liberava. Como não seria preciso conferir e
fechar o caixa, deveríamos simplesmente mandar a papelada para a tesouraria.
Assim fizemos. Depois disso, como eu sempre vinha fazendo, recolhi o saco de
lixo do meu guichê – que para meu alívio continuava relativamente pesado – me
despedi e ia saindo, quando alguém do outro lado do saguão se dirigiu a mim
quase gritando:
“– Ôô rapaz...”
Para meu desespero, quando levantei a cabeça
e olhei na direção de onde vinha a voz, vi que era o delegado quem me chamava.
Tentando manter a calma respondi:“– Pois não, doutor”.
“– O que tem aí dentro desse saco de lixo,
rapaz?” – perguntou rispidamente o delegado.
“– Só lixo do meu guichê, doutor. Todo dia eu
recolho o meu pra ajudar o pessoal da limpeza” – respondi justificando, na
esperança de que me deixasse em paz.
“– Sei... traga esse saco aqui, deixe eu dar
uma olhada”.
– Naquele momento fiquei sem saber o que
fazer: pensei em sair correndo, pensei em confessar e me entregar, pensei em
colocar a culpa em alguém, pensei em desmaiar, pensei até em morrer. No
entanto, resignado com o meu fado, decidi atender a ordem do delegado e
resoluto fui caminhando calmamente na direção dele. Afinal, naquela altura da
minha vida eu já tinha aprendido que o que não tem remédio, remediado está.
Porém, antes que eu chegasse ao meio do saguão, o escrivão saiu da sala onde
fomos interrogados, anunciando aos berros:
“– Doutor, nossos homens prenderam o bando, estavam
mesmo em Santa Tereza, como o nosso informante havia falado. Nesse momento eles
estão sendo levados lá para a nossa DP”.
– Ao receber aquela informação, o delegado
simplesmente se esqueceu de mim. Virou as costas, deu algumas ordens, chamou
alguns dos seus agentes e saiu rapidamente em direção ao seu distrito.
– Para meu alívio, mais uma vez minha
cúmplice tinha entrado em cena decisivamente. Como se nada tivesse acontecido,
me despedi de novo e atravessei o saguão em direção à saída. Assim que saí do
banco, ao invés de jogar o saco de lixo na caçamba, guardei-o imediatamente na
minha pasta.
– A alguns quarteirões do banco, por
precaução peguei um taxi, pois pensava que da mesma maneira que tinha tido uma
grande sorte naquele dia, poderia ter um grande azar. Dentro do taxi, durante o
trajeto, fui abraçado à minha pasta, imaginando quanto exatamente haveria ali
dentro, eu sabia que tinha uma boa quantia. Aquele foi um dia muito
movimentado, muitos comerciantes tinham depositado todo o fluxo de caixa do Natal.
Da mesma forma que o assalto foi bem executado, deve ter sido bem planejado,
pois a data foi muito bem escolhida, além de ter sido numa segunda, que
geralmente era um dia bem movimentado, foi um dia depois do Natal, uma das
datas mais rentáveis para o comércio.
– Quando desci do taxi, na praça Sans Penha,
apesar do meu medo, agi naturalmente até chegar em casa. Assim que entrei,
tranquei a porta, abri minha pasta e tirei de lá o saco de lixo. Fui para o
quarto, sentei no chão, onde despejei o conteúdo do saco, recoloquei o que era
lixo no saco e vi que havia mais de quinze maços grossos de notas. Comecei a
desfazê-los, a separar as notas e a contá-las, com a agilidade que já havia
adquirido, não gastei mais que dez minutos nessa operação. Havia pouco mais de
três milhões de cruzeiros, era o equivalente ao preço de mercado de dois Opalas
novos, na época, o Opala era um carro de luxo. A vida sorriu pra mim, eu tinha
sido sorteado com uma pequena fortuna, havia ganhado dos comunistas um bom
presente de Natal, por isso, eu jamais poderei condenar a luta ou a causa
deles; isso sim seria o maior dos contrassensos.
– Naquele momento, início de 67, eu já
cursava o quarto ano de Economia. E como aluno dedicado e funcionário de um
banco, eu conhecia bem o mercado financeiro, a bolsa de valores, as operações
de câmbio e outros campos de investimento. O momento político era tenebroso,
mas o econômico era extremamente promissor, propício aos pequenos, médios e
grandes empreendimentos, havia muito capital estrangeiro circulando, isso tinha
a ver com o avanço das empresas multinacionais. Eram os promórdios daquilo que
ficou conhecido como o milagre brasileiro.
– Rapidamente e com certa segurança, eu
consegui multiplicar o dinheiro. Continuei trabalhando no banco, mas investia
em outras instituições para não provocar comentários, nem levantar suspeitas.
Por sorte ou competência, prosperei muito, em pouco tempo.
– No final de 67, me casei com sua mãe, que,
como você sabe, foi minha colega de faculdade. No ano seguinte você nasceu, e
ao lado de vocês prosperei ainda mais, na verdade, prosperamos. Adquirimos
indústrias, estabelecemos comércios, investimos no setor de transportes e na
construção civil. Em menos de quinze anos constituímos um grupo econômico
sólido e respeitado. Cada centímetro que você crescia representava um milhão de
dólares a mais no nosso patrimônio. O resto da história você conhece...
– Essa é a minha história, meu filho. Não sei
como você a recebeu e como ela vai repercutir no seu íntimo; não sei como vai
digeri-la. Não acredito nessa conversa de empatia, de nos colocarmos no lugar
do outro, afinal, ouvir uma história é muito diferente de vivê-la; refletir
sobre ela é infinitamente inferior a senti-la pulsar dentro da gente.
Sinceramente, não sei como você vai me ver a partir de agora, que conceito fará
de mim. O que sei é que minha consciência me absolve e que desde o dia do
assalto nunca mais tive aquele pesadelo – concluiu André.
No horizonte, surgiam os primeiros raios de
sol, que com dificuldade rompiam a neblina e gradativamente destacavam as
silhuetas dos morros distantes.
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