Lembro perfeitamente de tudo o que aconteceu
naquele dia, nos mínimos detalhes. Era 13 de agosto de 2013, às 13 horas em
ponto. Os supersticiosos enxergarão na data e na hora sinais funestos e o
relato que se segue irá demonstrar que eles têm razão, ao menos em parte.
Sou professor e trabalho em uma universidade
a cem quilômetros de minha casa. Três vezes por semana faço o trajeto
casa-universidade e universidade-casa. Geralmente, faço o percurso
universidade-casa em duas horas mais ou menos, dependendo do trânsito.
Nesse dia, como sempre, cheguei em frente a
minha casa, posicionei o carro na rampa da garagem, acionei o controle do
portão. Enquanto aguardava o portão abrir, meu celular tocou e, como era uma
ligação importante, atendi. Quando o portão terminou de abrir, subi lentamente
a rampa da garagem, que era um pouco íngreme. Novamente acionei o controle para
fechar o portão.
Por estar distraído com a ligação, me esqueci
de puxar o freio de mão. Desci do carro, ainda ao telefone. Lembrei, porém, que
para atender à solicitação da pessoa do outro lado da linha eu precisaria de
alguns documentos que estavam na minha pasta.
A pasta estava no assoalho do carro, do lado
do passageiro. Assim que me abaixei para pegar a pasta, avistei minha filha,
Nicole, então com quase três anos, surgindo na porta da sala e vindo toda
sorridente em minha direção.
Só quem é pai ou mãe conseguirá entender a
emoção que senti ao vê-la caminhando em minha direção, com os braços abertos e
repetindo: “Papai... papai chegô... papai chegô...”. E também só quem teve
filhos poderá dimensionar a aflição, o desespero, que senti quando percebi que
ao pegar a minha pasta, sua alça se enroscou no câmbio e desengatou o carro,
que começou a descer de ré.
Num instante, me desvencilhei de tudo, celular e pasta, para
tentar segurar o carro, ao mesmo tempo em que gritava para minha filha:
“Corre, Nicole, corre!!!”
Infelizmente, eu não tive forças para segurar
o carro e a Nicole não teve tempo de escapar. Olhei para o outro lado do carro
procurando por ela e vi minha mulher chegar correndo apavorada com os meus
gritos e com o barulho do carro batendo no portão. Sem emitir palavra, mas com
um olhar indagador e rasos d’água, minha mulher me implorava uma explicação.
Os segundos que separaram o instante em que o
carro começou a se mover e o momento em que me abaixei para olhar embaixo dele
procurando pela Nicole de forma alguma podem ser avaliados temporalmente. Ao
menos para mim, aqueles poucos segundos foram uma eternidade. Uma eternidade de
agonia, de aflição, de medo, de torturas.
Naquele insignificante intervalo de tempo,
uma verdadeira retrospectiva em torno da vida da Nicole passou diante dos meus
olhos. Vi quadro a quadro e revivi todas as emoções que cada momento da vida da
Nicole tinha me proporcionado, desde sua concepção até o instante, segundos
antes, em que a vi correndo em minha direção.
Revi a cena em que minha mulher se aproximou
de mim com as mãos para trás e com um sorriso imenso nos lábios, pedindo para
que eu adivinhasse o que ela tinha nas mãos: “Não sei, mas deve ser uma coisa
boa, considerando o tamanho do seu sorriso”, respondi no mesmo momento em que
ela me mostrava o teste de gravidez, que indicava positivo.
Depois disso, revi, em seus detalhes, cada um
dos 4 exames de ultrassom que minha esposa tinha feito e nos quais a
acompanhei. Revivi a emoção que senti ao escutar pela primeira vez o
coraçãozinho daquele bebê batendo. Revi o momento, no terceiro ultrassom, em
que a médica afirmou com convicção: “É uma menina!”.
Recapitulei o instante em que escolhemos o
nome. Recapitulei ainda todos os preparativos para a chegada de Nicole: a
pintura do quarto, a compra do berço e a compra de cada uma das peças do
enxoval. Revi absolutamente tudo.
Revivi o susto que tomei quando minha esposa
me comunicou o rompimento da bolsa. Revivi, também, a inexplicável emoção de
acompanhar o parto e a incrível sensação de me sentir um deus ao ouvir o
primeiro vagido de Nicole e de pegá-la no colo pela primeira vez.
Revi cada um dos dias de vida de Nicole e
tudo o que tinha acompanhado e vivenciado com ela: a mudança na cor dos olhos,
os diferentes timbres de choro – o de fome, o de cólica – as infinitas trocas
de fraldas, as primeiras tentativas de controlar o pescoço, os primeiros
balbucios, as primeiras tentativas de engatinhar, o surgimento dos primeiros
dentinhos e a irritação que os acompanha e novamente me afligi ao reviver a
primeira febre alta de Nicole.
Revi os preparativos para a festinha de
aniversário de um ano de Nicole e felicidade dela, já no dia da festa, ao ver a
casa toda colorida, cheia de balões, decorada para festa. Revi o brilho nos
olhos de Nicole ao receber os primeiros presentes e ao ver todas aquelas
crianças reunidas, se divertindo numa verdadeira algazarra.
Fiquei extremamente emocionado ao reviver a
primeira vez que Nicole falou “papai” e revi os risos que eu e minha esposa
demos com as confusões que Nicole fazia com as sílabas das palavras – papagaio
virou pacagaio; adesivo, adeviso; maionese, manoiese e assim por diante. Revivi
a emoção de assistir às primeiras tentativas que Nicole fez para ficar em pé e
andar; novamente senti a felicidade de acompanhar ao lado dela a conquista dos primeiros
e cambaleantes passos. Também revi os sustos, os tombos e os pequenos
ferimentos decorrentes dessas tentativas.
Revivi as pequenas-grandes descobertas que
Nicole ia fazendo e todos os gestos e impressões que acompanhavam essas
descobertas. Revi a careta que Nicole fez ao descobrir o azedume do limão; a
estranheza dela ao sentir as bolhas do refrigerante estourarem na ponta de seu
nariz; a expressão de nojo ao colocar seus pés descalços numa poça de lama.
Recapitulei suas tentativas de dominar a língua
e construir frases e relembrei as mais engraçadas – “Papai, você tá enforcando
minha perna”; “Lemanta, mamãe, que o sol já tá pronto”; “Amanhã eu fui na casa
da vovó com o papai”. Revi a comemoração do segundo aniversário de Nicole: a
decoração do Nemo, os balões azuis e amarelos, o bolo no formato de Nemo, que,
diga-se de passagem, provocou o choro da Nicole na hora do corte.
Por fim, revivi o nosso sofrimento – meu, de
minha esposa e da Nicole – quando ela começou a frequentar o berçário da
creche. Revi e revivi muitas outras coisas que não me lembro agora, mas que
passaram diante dos meus olhos naquele momento aflitivo.
Reviver todos esses episódios referentes à
vida da Nicole, à nossa vida em comum, não durou mais que cinco segundos. Eles
se encaixaram no intervalo de tempo entre eu perceber que a Nicole não estava
do outro lado do carro e o ato de me abaixar para procurá-la sob o carro.
Infinitos segundos que me provaram a subjetividade do tempo.
À medida que eu me abaixava para olhar sob o
carro, meu coração acelerava, minha respiração se tornava cada vez mais difícil
e um suor frio e pegajoso escorria pelo meu rosto. Eu sentia uma opressão
indescritível.
Quando coloquei minha mão no chão, todo o meu
corpo tremeu em convulsão, a custo consegui me conter. Para piorar a situação,
meu estômago estava embrulhado, uma tremenda ânsia de vômito me provocava
calafrios, minha visão ficou bastante nublada e eu ainda ouvia, como que dentro
da minha cabeça, um zunido muito forte, semelhante ao barulho da cigarra.
Eu sentia que iria desmaiar a qualquer
momento. Não sei como ou onde consegui forças para me manter firme e continuar
abaixando... De repente, vi a mãozinha de Nicole estendida próxima à roda
traseira esquerda, num pulo cheguei à parte traseira do carro.
Apesar do medo, do pavor, do que eu poderia
encontrar, novamente me abaixei. Eu mal podia acreditar no que estava vendo:
Nicole estava lá, deitada de lado, quase em posição fetal, com os olhos
arregalados, olhando para mim... e sorrindo. Percebendo minha estupefação e
minha falta de ação, Nicole mexeu e estendeu os bracinhos como que pedindo para
que eu a tirasse de lá.
Com todo o cuidado, segurei em seu tronco e a
puxei lentamente; enquanto isso, Nicole continuava sorrindo. Depois de
retirá-la de baixo do carro, coloquei-a no colo, aparentemente estava ilesa,
mas por via das dúvidas, comecei a apalpá-la com carinho à procura de
ferimentos ou fraturas. Alguns instantes depois e ainda sorrindo, Nicole olhou
nos meus olhos e perguntou:
– Cê viu o anjo, papai?...
Sem saber o que pensar e sem conseguir conter
a emoção, chorando, abraçando e beijando a Nicole e minha esposa, respondi:
– Vi, filha... vi...
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