Páginas

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

NICOLE

 

Lembro perfeitamente de tudo o que aconteceu naquele dia, nos mínimos detalhes. Era 13 de agosto de 2013, às 13 horas em ponto. Os supersticiosos enxergarão na data e na hora sinais funestos e o relato que se segue irá demonstrar que eles têm razão, ao menos em parte.

Sou professor e trabalho em uma universidade a cem quilômetros de minha casa. Três vezes por semana faço o trajeto casa-universidade e universidade-casa. Geralmente, faço o percurso universidade-casa em duas horas mais ou menos, dependendo do trânsito.

Nesse dia, como sempre, cheguei em frente a minha casa, posicionei o carro na rampa da garagem, acionei o controle do portão. Enquanto aguardava o portão abrir, meu celular tocou e, como era uma ligação importante, atendi. Quando o portão terminou de abrir, subi lentamente a rampa da garagem, que era um pouco íngreme. Novamente acionei o controle para fechar o portão.

Por estar distraído com a ligação, me esqueci de puxar o freio de mão. Desci do carro, ainda ao telefone. Lembrei, porém, que para atender à solicitação da pessoa do outro lado da linha eu precisaria de alguns documentos que estavam na minha pasta.

A pasta estava no assoalho do carro, do lado do passageiro. Assim que me abaixei para pegar a pasta, avistei minha filha, Nicole, então com quase três anos, surgindo na porta da sala e vindo toda sorridente em minha direção.

Só quem é pai ou mãe conseguirá entender a emoção que senti ao vê-la caminhando em minha direção, com os braços abertos e repetindo: “Papai... papai chegô... papai chegô...”. E também só quem teve filhos poderá dimensionar a aflição, o desespero, que senti quando percebi que ao pegar a minha pasta, sua alça se enroscou no câmbio e desengatou o carro, que começou a descer de ré.
    Num instante, me desvencilhei de tudo, celular e pasta, para tentar segurar o carro, ao mesmo tempo em que gritava para minha filha:

“Corre, Nicole, corre!!!”

Infelizmente, eu não tive forças para segurar o carro e a Nicole não teve tempo de escapar. Olhei para o outro lado do carro procurando por ela e vi minha mulher chegar correndo apavorada com os meus gritos e com o barulho do carro batendo no portão. Sem emitir palavra, mas com um olhar indagador e rasos d’água, minha mulher me implorava uma explicação.

Os segundos que separaram o instante em que o carro começou a se mover e o momento em que me abaixei para olhar embaixo dele procurando pela Nicole de forma alguma podem ser avaliados temporalmente. Ao menos para mim, aqueles poucos segundos foram uma eternidade. Uma eternidade de agonia, de aflição, de medo, de torturas.

Naquele insignificante intervalo de tempo, uma verdadeira retrospectiva em torno da vida da Nicole passou diante dos meus olhos. Vi quadro a quadro e revivi todas as emoções que cada momento da vida da Nicole tinha me proporcionado, desde sua concepção até o instante, segundos antes, em que a vi correndo em minha direção.

Revi a cena em que minha mulher se aproximou de mim com as mãos para trás e com um sorriso imenso nos lábios, pedindo para que eu adivinhasse o que ela tinha nas mãos: “Não sei, mas deve ser uma coisa boa, considerando o tamanho do seu sorriso”, respondi no mesmo momento em que ela me mostrava o teste de gravidez, que indicava positivo.

Depois disso, revi, em seus detalhes, cada um dos 4 exames de ultrassom que minha esposa tinha feito e nos quais a acompanhei. Revivi a emoção que senti ao escutar pela primeira vez o coraçãozinho daquele bebê batendo. Revi o momento, no terceiro ultrassom, em que a médica afirmou com convicção: “É uma menina!”.

Recapitulei o instante em que escolhemos o nome. Recapitulei ainda todos os preparativos para a chegada de Nicole: a pintura do quarto, a compra do berço e a compra de cada uma das peças do enxoval. Revi absolutamente tudo.

Revivi o susto que tomei quando minha esposa me comunicou o rompimento da bolsa. Revivi, também, a inexplicável emoção de acompanhar o parto e a incrível sensação de me sentir um deus ao ouvir o primeiro vagido de Nicole e de pegá-la no colo pela primeira vez.

Revi cada um dos dias de vida de Nicole e tudo o que tinha acompanhado e vivenciado com ela: a mudança na cor dos olhos, os diferentes timbres de choro – o de fome, o de cólica – as infinitas trocas de fraldas, as primeiras tentativas de controlar o pescoço, os primeiros balbucios, as primeiras tentativas de engatinhar, o surgimento dos primeiros dentinhos e a irritação que os acompanha e novamente me afligi ao reviver a primeira febre alta de Nicole.

Revi os preparativos para a festinha de aniversário de um ano de Nicole e felicidade dela, já no dia da festa, ao ver a casa toda colorida, cheia de balões, decorada para festa. Revi o brilho nos olhos de Nicole ao receber os primeiros presentes e ao ver todas aquelas crianças reunidas, se divertindo numa verdadeira algazarra.

Fiquei extremamente emocionado ao reviver a primeira vez que Nicole falou “papai” e revi os risos que eu e minha esposa demos com as confusões que Nicole fazia com as sílabas das palavras – papagaio virou pacagaio; adesivo, adeviso; maionese, manoiese e assim por diante. Revivi a emoção de assistir às primeiras tentativas que Nicole fez para ficar em pé e andar; novamente senti a felicidade de acompanhar ao lado dela a conquista dos primeiros e cambaleantes passos. Também revi os sustos, os tombos e os pequenos ferimentos decorrentes dessas tentativas.

Revivi as pequenas-grandes descobertas que Nicole ia fazendo e todos os gestos e impressões que acompanhavam essas descobertas. Revi a careta que Nicole fez ao descobrir o azedume do limão; a estranheza dela ao sentir as bolhas do refrigerante estourarem na ponta de seu nariz; a expressão de nojo ao colocar seus pés descalços numa poça de lama.

Recapitulei suas tentativas de dominar a língua e construir frases e relembrei as mais engraçadas – “Papai, você tá enforcando minha perna”; “Lemanta, mamãe, que o sol já tá pronto”; “Amanhã eu fui na casa da vovó com o papai”. Revi a comemoração do segundo aniversário de Nicole: a decoração do Nemo, os balões azuis e amarelos, o bolo no formato de Nemo, que, diga-se de passagem, provocou o choro da Nicole na hora do corte.

Por fim, revivi o nosso sofrimento – meu, de minha esposa e da Nicole – quando ela começou a frequentar o berçário da creche. Revi e revivi muitas outras coisas que não me lembro agora, mas que passaram diante dos meus olhos naquele momento aflitivo.

Reviver todos esses episódios referentes à vida da Nicole, à nossa vida em comum, não durou mais que cinco segundos. Eles se encaixaram no intervalo de tempo entre eu perceber que a Nicole não estava do outro lado do carro e o ato de me abaixar para procurá-la sob o carro. Infinitos segundos que me provaram a subjetividade do tempo.

À medida que eu me abaixava para olhar sob o carro, meu coração acelerava, minha respiração se tornava cada vez mais difícil e um suor frio e pegajoso escorria pelo meu rosto. Eu sentia uma opressão indescritível.

Quando coloquei minha mão no chão, todo o meu corpo tremeu em convulsão, a custo consegui me conter. Para piorar a situação, meu estômago estava embrulhado, uma tremenda ânsia de vômito me provocava calafrios, minha visão ficou bastante nublada e eu ainda ouvia, como que dentro da minha cabeça, um zunido muito forte, semelhante ao barulho da cigarra.

Eu sentia que iria desmaiar a qualquer momento. Não sei como ou onde consegui forças para me manter firme e continuar abaixando... De repente, vi a mãozinha de Nicole estendida próxima à roda traseira esquerda, num pulo cheguei à parte traseira do carro.

Apesar do medo, do pavor, do que eu poderia encontrar, novamente me abaixei. Eu mal podia acreditar no que estava vendo: Nicole estava lá, deitada de lado, quase em posição fetal, com os olhos arregalados, olhando para mim... e sorrindo. Percebendo minha estupefação e minha falta de ação, Nicole mexeu e estendeu os bracinhos como que pedindo para que eu a tirasse de lá.

Com todo o cuidado, segurei em seu tronco e a puxei lentamente; enquanto isso, Nicole continuava sorrindo. Depois de retirá-la de baixo do carro, coloquei-a no colo, aparentemente estava ilesa, mas por via das dúvidas, comecei a apalpá-la com carinho à procura de ferimentos ou fraturas. Alguns instantes depois e ainda sorrindo, Nicole olhou nos meus olhos e perguntou:

– Cê viu o anjo, papai?... 

Sem saber o que pensar e sem conseguir conter a emoção, chorando, abraçando e beijando a Nicole e minha esposa, respondi:

– Vi, filha... vi...

Nenhum comentário:

Postar um comentário