Numa sexta-feira
13, era maio de 2011 – informo a data para que algum leitor mais perspicaz,
mais supersticioso ou mais esotérico que eu consiga extrair alguma significação
que me escapa – eu e meu amigo Augusto caminhávamos tranquilamente para o nosso
trabalho, quando um homem (aproximadamente trinta e cinco anos, vestindo
farrapos, extremamente sujo e fedido, aparentemente com problemas mentais e
muito provavelmente morador de rua) que vinha na mesma calçada mas na direção
oposta parou a uns três metros à nossa frente, tirou o sapato do pé direito, o
deixou lá no meio da calçada e continuou a caminhar, passou por nós e seguiu o
seu caminho sem olhar para trás nenhuma vez.
Paramos, olhamos
para o sapato, olhamos para homem, nos olhamos procurando alguma explicação;
demos mais alguns passos e novamente olhamos para o homem e para o sapato e de
novo olhamos para o homem, que já dobrava a esquina. Por alguns instantes
ficamos ali parados olhando para o sapato e para a esquina, talvez esperando
que o homem voltasse e buscasse seu sapato, mas ele não voltou!!!
Depois de alguns
poucos segundos, olhei para o Augusto, que parecia ruminar aquela cena, com uma
expressão meio atarantada, Augusto olhou para mim, talvez procurando uma
explicação. De minha parte, naquele momento eu não teria sido capaz de oferecer
qualquer explicação para cena que havíamos presenciado. Por fim, demos de
ombros e seguimos nosso caminho em direção ao trabalho.
Trabalhávamos
numa escola. Eu como professor de História e Augusto como professor de
Sociologia. Com muita dificuldade consegui me concentrar para ministrar as
minhas quatro aulas daquele dia, pois a cena do homem do sapato ou do sapato do
homem - aquele silencioso e perturbador discurso - não me saía da cabeça nem da
retina.
Por volta das
onze horas da manhã eu já estava dispensado das minhas atividades de professor,
ao menos temporariamente, porque eu ainda teria que ministrar naquele mesmo dia
as três primeiras aulas do período noturno. Fui para casa. O Augusto ainda
ficou na escola, porque ainda teria que dar – ou como ele preferia dizer,
vender – aulas nos dois últimos horários.
Almocei assistindo ao esporte, hábito que tenho desde criança, mas, entre um
gol e outro, lá estava o sapato e o homem. Depois de tomar um banho, resolvi
fazer a sesta. Peguei um livro que eu já estava lendo há algum tempo – Mistério
de Lisboa, de Camilo Castelo Branco – e fui pra cama... em vão... nem livro nem
sono. Não conseguia me concentrar na leitura nem parar de pensar naquela cena
para que o sono viesse. Desisti de ler e também de dormir.
Então resolvi
refletir e tentar extrair um significado ou uma explicação para aquele episódio
que havia acontecido por volta das sete da manhã. Passei a tarde recapitulando
aquela cena e refletindo sobre ela: o homem vindo em nossa direção, tirando o
sapato e abandonando-o em nossa frente e seguindo sempre em frente como se nada
tivesse acontecido.
Escutei um
barulho no portão, certamente era minha mulher que chegava, quando olhei no
relógio já eram dezenove horas e certamente eu chegaria atrasado para minha
primeira aula. Liguei para o colégio, inventando uma desculpa qualquer e
pedindo que entretivessem meus alunos, pois eu já estava a caminho.
– Atrasado de
novo, não é Felipe? Aposto que dormiu a tarde inteira e não lavou sequer o
próprio prato em que comeu. Eu não tenho vocação para ser sua escrava Felipe;
não aguento mais isso...
– Eu também te
amo, meu amor, só que, como você mesmo disse, estou um pouco atrasado pra gente
se amar agora. Se quiser, Daniela, mais tarde a gente se fala, beijo – fui em
direção a ela com o propósito de dar um beijo apaziguador, mas, como já era
costume nos últimos tempos, ela me repeliu asperamente.
Ao chegar à
escola, fui recebido por um olhar nada amigável do diretor, fingindo ignorar
aquela repreensão me dirigi direta e imediatamente para turma que me aguardava,
o segundo ano do ensino médio. Não se pode dizer que meus alunos estavam
ansiosos pela minha chegada. Aliás, a minha chegada quase interrompeu uma
partida de truco, que acontecia sobre a minha mesa.
– Podem terminar
a partida, eu espero – anunciei tranquilamente, lembrando o olhar de censura
que há pouco eu havia recebido do diretor. A essas pequenas vinganças ou
revanches Augusto dava o pomposo nome de Microfísica do Poder.
Por volta das
nove e meia da noite eu já tinha ministrado as três aulas e estava livre. Livre
do trabalho, não da cena. Lembrei que era sexta-feira, meu dia predileto da
semana, e resolvi ligar para o Augusto:
– Qual é, meu
irmão; você tá ocupado aí?
– Não, cara, tô
tranquilo pode falar, na verdade, eu já ia te ligar.
– Então, tá a fim
tomar umas cervas ali no Pau Brasil e trocar umas ideias? – perguntei sem
cerimônia.
– Bora nessa! Eu
ia te ligar justamente pra te fazer a mesma proposta – respondeu Augusto,
naquele tom de camaradagem que só existe nas verdadeiras amizades.
– Então tá
combinado, meu irmão, a gente se encontra lá por volta das onze – concluí,
esperando só a confirmação de Augusto.
– Fechado! A gente
se vê lá, abraço – confirmou Augusto.
– Valeu! – eu
disse, desligando o telefone.
Fui para casa
tomar um banho, trocar de roupa, comer alguma coisa e saber se a Daniela
gostaria de tomar suas vodcas com soda e dar uma espairecida. No caminho, eu
ainda pensava na história do sapato, porém, com menos intensidade – a Esfinge
fechara a sua boca e recuava –, porque eu já tinha conseguido tranquilizar um
pouco meu cérebro com uma interpretação plausível e até provável para aquela
cena.
Chegando em casa
encontrei a Daniela com a cara amarrada, assistindo sua novela e nada disposta
a conversas. Tentei brincar, em vão. Tentei acariciar, também em vão. Preparei
um lanche e fui comê-lo na sala, ao lado dela e diante da televisão.
– Por acaso você
pode fazer o favor de ir comer na cozinha, você vai sujar a casa toda com essas
migalhas de pão – me repreendeu Daniela, assim que sentei no sofá, e como eu
não estava disposto a discutir, levantei resignadamente, sem proferir uma só
palavra e fui comer na cozinha.
Assim que
terminei o lanche, voltei à sala para saber se Daniela gostaria de sair para se
divertir um pouco. Esperei o comercial e então perguntei:
– E aí, Dani,
você quer sair pra tomar umas vodcas e dar uma desestressada?
– Quem te disse
que eu tô estressada? – respondeu ela rispidamente.
– Não, meu amor, é maneira de falar, só estou querendo saber se você não
gostaria de sair pra se divertir um pouco – tentei amenizar e esclarecer.
– Não, obrigada!
Aposto que você tá pensando em ir naquele bar barulhento que só toca rock, faz
tempo que não suporto mais esse tipo de música. Prefiro ficar aqui mesmo,
sozinha. Antes só do que...
Daniela
praticamente sussurrou esta última frase, apesar disso, eu consegui entendê-la.
Saí da sala e fui para o banheiro. Lavei o corpo com água e sabão e a alma com
lágrimas, tentando lembrar o momento exato em que aquela Daniela meiga,
espirituosa e brincalhona pela qual me apaixonei se transformou nesse poço de
amargura, ressentimento e rispidez com o qual tenho o desprazer de conviver hoje.
Troquei de roupa;
fui à sala e comuniquei que estava saindo:
– Já vou indo,
não vou demorar, tchau! – e Daniela continuou como estava, não moveu um músculo
sequer e, como se eu fosse um fantasma, ignorou a minha presença e as minhas
palavras. Virei e saí.
“Vinte, vinte,
vinte quatro horas a mais
Eu quero ser
sedado
Nada de amor
Nada de paz
Eu quero ser
sedado
Me leva pro
aeroporto, me bota no avião
Vamo, vamo, vamo
eu hoje tô o cão
Eu não controlo a
cuca
Eu não controlo a
mão
Oh, não, não,
não, não, não”...
Quando cheguei ao
bar, por volta das onze e quinze, tocava essa versão de I wanna be sedated, do
Ramones, cantada pela Rita Lee, me senti em casa; na verdade, me senti muito
melhor do que em casa. O Augusto já estava lá, na mesa que tínhamos o hábito de
ocupar. Assim que sentei, ele me perguntou:
– Que cara é
essa, meu irmão?
– Nada... ou
melhor, o de sempre: o mal humor da Daniela... mas deixa isso pra lá, já
melhorei com a música e daqui duas cervejas vou estar completamente curado –
respondi abrindo a primeira delas.
– Meu irmão,
mudando de assunto, passei o dia inteiro lembrando daquele cara do sapato, no
caminho pro trabalho – disse Augusto, depois de sorver um grande gole de
cerveja.
– Então, fomos
dois, meu chapa – respondi, me ajeitando na cadeira – E como você interpreta
aquela mensagem, Augusto? – interroguei.
– Mensagem?! Não
entendi, como assim? – indagou Augusto, meio confuso.
– Isso mesmo, meu
amigo: uma mensagem. É assim que interpreto as coisas que acontecem ao meu
redor. Não acredito em acaso, não acredito em coincidência. Acredito que a vida
é um livro; cada ano, um capítulo; cada dia, um parágrafo; cada momento, uma
linha escrita e cada acontecimento, uma possível mensagem, cujo conteúdo
devemos, ao mesmo tempo, vivenciar e interpretar se quisermos ser, pelo menos,
coautores do livro de nossas próprias vidas. Caso contrário, continuaremos
desempenhando o medíocre papel de fantoches, sem jamais interferirmos
conscientemente na história que, à nossa revelia, vai sendo escrita para nós.
– Pô cara, foi
exatamente essa a sensação que eu tive, a sensação de que aquela não era uma
cena qualquer, tive a forte impressão de que devia haver por trás daquilo uma
significação qualquer, como você acabou de dizer, pois a imagem daquele cara
largando o sapato e seguindo o caminho não me abandonou por um segundo sequer.
Não é comum um evento qualquer me impressionar tanto e por isso passei o dia
inteiro tentando encontrar uma explicação pra aquela cena – declarou Augusto,
em tom de desabafo.
– Então, como
você interpreta aquela cena, aquela mensagem que foi enviada pra nós? –
perguntei, curioso.
– Prefiro ouvir
sua versão primeiro, antes de socializar a minha – respondeu Augusto, abrindo
mais duas long necks e me oferecendo uma.
– “Quantos olhos,
tantas vistas”, diria Machado de Assis... – pensei alto, e antes que eu pudesse
continuar, interveio Augusto:
– Que merda é
essa, meu irmão, já tá bêbado, com duas cervejas?
– Não, cara,
tenha paciência, seu mané, você nasceu de cinco meses? O que ia dizendo, quando
pensei no Machado e antes de ser interrompido, é que cada um interpreta as
mensagens ou os acontecimentos a partir da perspectiva ou da visão de mundo
adota, entendeu? É como se cada indivíduo enxergasse as coisas por meio de uma
lente e essa lente foi e vai sendo construída a partir das experiências de vida
de cada um, percebe? Por isso que é tão difícil conseguir o consenso em
qualquer coisa que envolva mais de uma pessoa – concluí, pensativo.
– E aí? Vai dar
sua versão da cena que presenciamos ou vai ficar filosofando? – Augusto
perguntou rindo.
– Como eu já te
disse, recapitulei, pensei e refleti o dia inteiro sobre aquela cena e a
mensagem que, até agora, eu consegui extrair dela pode ser traduzida mais ou
menos assim:
– Se algo te
incomoda, livre-se imediata e absolutamente disso - como aquele homem fez com o
sapato -, pois nada que te incomode pode ser indispensável, além disso,
despreze o que vão pensar ou dizer sobre a sua ação, faça como aquele homem,
não olhe para trás – concluí, um pouco emocionado ao lembrar da decisão que eu
havia tomado minutos antes, durante meu banho.
– Pô, meu irmão,
faz muito sentido. Faz sentido também o que você disse sobre interpretarmos a
mensagem de acordo com as nossas concepções, porque a minha interpretação é um
pouco diferente da sua, não por acaso, mais sociológica. Eu interpretei assim,
vê se faz sentido pra você:
– Eu, você, o garçom,
o vocalista, o baterista, o barman – Augusto apontava enquanto falava – enfim,
todos, formamos juntos um corpo social, ao qual demos o nome de sociedade,
certo?
– Certo!
– Atualmente - e
sabe-se lá desde quando, acho que desde que foi constituída na pré-história -
essa sociedade é excludente. Exclui ou deixa à margem tudo e todos que não se
adaptam às suas normas, tudo que atrapalha o seu bom funcionamento ou tudo o
que incomode e influencie negativamente os que se adaptaram ou se submeteram às
suas regras, concorda?
– Cara, pra que você tá me perguntando isso? Eu estudei História e não
Administração, você sabe que eu concordo – respondi.
– Bicho, você
nunca ouviu falar em retórica?
– Vai, continue.
– Então,
recapitulemos o que eu estava dizendo, antes de você me interromper: juntos
formamos uma sociedade que simplesmente descarta o que a incomoda, ou seja,
naquela cena que nos impressionou, o homem maltrapilho, sujo, fedido, com
problemas mentais representa a sociedade. E pra ser sincero, em minha
concepção, é a melhor imagem ou representação que já vi da nossa sociedade, a
que mais se aproximou da verdade. Pra completar a cena, o sapato - que
incomodava e que sem cerimônia ou remorso foi descartado, abandonado no meio da
rua - representa os moradores de rua, os drogados, os bêbados, os sem-teto, os
loucos, os criminosos e todos os outros dejetos sociais, para os quais demos as
costas, ignorando-os, achando que isso era suficiente para que deixassem de
existir.
– É isso! Essa é
minha interpretação para aquela cena – concluiu Augusto.
– Putz, meu
irmão, você anda lendo muito Marx – brinquei.
– Nem é preciso conhecer Marx pra chegar a essa conclusão, basta não ser cego,
e não tô me referindo a cegueira física, mas a outro tipo de cegueira, a
cegueira moral ou espiritual, no sentido filosófico do termo.
O resto da noite
foi só rock’n’roll e cerveja. Nos embriagamos e rimos a noite inteira. Eu
ignorei a promessa que tinha feito à Daniela de não demorar, e quando cheguei
em casa o sol já despontava, pra não acordá-la preferi dormir no sofá. No
sábado, assim que ela acordou, por volta das dez horas da manhã, tivemos nossa
última discussão.
Na verdade, só
ela discutiu. Escutei tranquilamente tudo que ela tinha pra dizer e xingar.
Quando ela terminou, fui até o quarto, peguei duas calças jeans, cinco
camisetas, um tênis, minha escova de dentes, coloquei tudo numa mochila, saí e
nunca mais voltei. Deixei pra trás aquele casamento que estava me incomodando a
muito tempo.
Afinal, de que
adiantaria eu receber uma mensagem tão eloquente como aquela e passar mais de
quatorze horas tentando decifrá-la, decodificá-la, se ela não me servisse para
nada, se não fosse para eu compreendê-la como uma mensagem para mim e se não
fosse para eu colocá-la em prática na minha vida?
Mas a mensagem
não foi só para mim, foi para o Augusto também e ele compreendeu isso. Assim
que acabou aquele ano letivo, Augusto se mudou para uma grande cidade e se
engajou visceralmente em diversos movimentos sociais em prol dos excluídos de
toda espécie. Agindo assim, Augusto deixou para trás toda vã teoria e partiu
para a prática; aboliu a ficção para viver a realidade.
Augusto se dedicou
mais intensamente a um movimento que lutava em benefício dos sem-teto.
Reivindicou social e judicialmente os direitos daquela gente; incomodou as
autoridades, solicitando entrevistas; denunciou na imprensa os abusos e os
descasos dessas mesmas autoridades para com os sem-teto; organizou
manifestações; coordenou ocupações; e morreu defendendo essa causa, durante uma
violenta operação policial de reintegração de posse.
Acabo de chegar
do enterro de Augusto, então, em sua homenagem, resolvi compartilhar essa
história, para que você, meu amigo leitor, tivesse acesso à mensagem que eu e
Augusto recebemos e para que começasse a prestar atenção às mensagens que, das
formas mais inusitadas e insuspeitas, podem lhe ser enviadas.
Já ia terminando
essa história quando chegou em minha casa um amigo e colega de profissão, o
Eliézer, que também era amigo do Augusto e vinha do enterro. Quando entrou,
perguntou apontando para o computador ligado:
– Você tava
trabalhando?
– Não, tava só
escrevendo uma história que aconteceu comigo e com o Augusto.
– Posso ler?
– Claro! Senta aí
– respondi, puxando a cadeira para que ele sentasse em frente ao computador.
Dez minutos
depois, afastou a cadeira, olhou em minha direção e falou:
– Dia 13 de maio
é o dia em que se comemora a Abolição da Escravatura, lembra? E tem mais:
durante o período da Escravidão, para os escravos o sapato simbolizava a
liberdade. Por isso, quando um escravo era alforriado, a sua primeira atitude
era comprar sapatos para, por assim dizer, declarar sua nova condição.
– Caraca, meu
irmão, é mesmo. Isso significa que aquele acontecimento carregava
implicitamente três níveis convergentes de significação, isto é, a data, a cena
como um todo e o sapato separadamente, tudo apontava simultaneamente pra a
ideia de liberdade... é... impressionante.
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