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quinta-feira, 4 de novembro de 2021

O SAPATO


Numa sexta-feira 13, era maio de 2011 – informo a data para que algum leitor mais perspicaz, mais supersticioso ou mais esotérico que eu consiga extrair alguma significação que me escapa – eu e meu amigo Augusto caminhávamos tranquilamente para o nosso trabalho, quando um homem (aproximadamente trinta e cinco anos, vestindo farrapos, extremamente sujo e fedido, aparentemente com problemas mentais e muito provavelmente morador de rua) que vinha na mesma calçada mas na direção oposta parou a uns três metros à nossa frente, tirou o sapato do pé direito, o deixou lá no meio da calçada e continuou a caminhar, passou por nós e seguiu o seu caminho sem olhar para trás nenhuma vez.

Paramos, olhamos para o sapato, olhamos para homem, nos olhamos procurando alguma explicação; demos mais alguns passos e novamente olhamos para o homem e para o sapato e de novo olhamos para o homem, que já dobrava a esquina. Por alguns instantes ficamos ali parados olhando para o sapato e para a esquina, talvez esperando que o homem voltasse e buscasse seu sapato, mas ele não voltou!!!

Depois de alguns poucos segundos, olhei para o Augusto, que parecia ruminar aquela cena, com uma expressão meio atarantada, Augusto olhou para mim, talvez procurando uma explicação. De minha parte, naquele momento eu não teria sido capaz de oferecer qualquer explicação para cena que havíamos presenciado. Por fim, demos de ombros e seguimos nosso caminho em direção ao trabalho.

Trabalhávamos numa escola. Eu como professor de História e Augusto como professor de Sociologia. Com muita dificuldade consegui me concentrar para ministrar as minhas quatro aulas daquele dia, pois a cena do homem do sapato ou do sapato do homem - aquele silencioso e perturbador discurso - não me saía da cabeça nem da retina.

Por volta das onze horas da manhã eu já estava dispensado das minhas atividades de professor, ao menos temporariamente, porque eu ainda teria que ministrar naquele mesmo dia as três primeiras aulas do período noturno. Fui para casa. O Augusto ainda ficou na escola, porque ainda teria que dar – ou como ele preferia dizer, vender – aulas nos dois últimos horários.
Almocei assistindo ao esporte, hábito que tenho desde criança, mas, entre um gol e outro, lá estava o sapato e o homem. Depois de tomar um banho, resolvi fazer a sesta. Peguei um livro que eu já estava lendo há algum tempo – Mistério de Lisboa, de Camilo Castelo Branco – e fui pra cama... em vão... nem livro nem sono. Não conseguia me concentrar na leitura nem parar de pensar naquela cena para que o sono viesse. Desisti de ler e também de dormir.

Então resolvi refletir e tentar extrair um significado ou uma explicação para aquele episódio que havia acontecido por volta das sete da manhã. Passei a tarde recapitulando aquela cena e refletindo sobre ela: o homem vindo em nossa direção, tirando o sapato e abandonando-o em nossa frente e seguindo sempre em frente como se nada tivesse acontecido.

Escutei um barulho no portão, certamente era minha mulher que chegava, quando olhei no relógio já eram dezenove horas e certamente eu chegaria atrasado para minha primeira aula. Liguei para o colégio, inventando uma desculpa qualquer e pedindo que entretivessem meus alunos, pois eu já estava a caminho.

– Atrasado de novo, não é Felipe? Aposto que dormiu a tarde inteira e não lavou sequer o próprio prato em que comeu. Eu não tenho vocação para ser sua escrava Felipe; não aguento mais isso...

– Eu também te amo, meu amor, só que, como você mesmo disse, estou um pouco atrasado pra gente se amar agora. Se quiser, Daniela, mais tarde a gente se fala, beijo – fui em direção a ela com o propósito de dar um beijo apaziguador, mas, como já era costume nos últimos tempos, ela me repeliu asperamente. 

Ao chegar à escola, fui recebido por um olhar nada amigável do diretor, fingindo ignorar aquela repreensão me dirigi direta e imediatamente para turma que me aguardava, o segundo ano do ensino médio. Não se pode dizer que meus alunos estavam ansiosos pela minha chegada. Aliás, a minha chegada quase interrompeu uma partida de truco, que acontecia sobre a minha mesa.

– Podem terminar a partida, eu espero – anunciei tranquilamente, lembrando o olhar de censura que há pouco eu havia recebido do diretor. A essas pequenas vinganças ou revanches Augusto dava o pomposo nome de Microfísica do Poder.

Por volta das nove e meia da noite eu já tinha ministrado as três aulas e estava livre. Livre do trabalho, não da cena. Lembrei que era sexta-feira, meu dia predileto da semana, e resolvi ligar para o Augusto:

– Qual é, meu irmão; você tá ocupado aí?

– Não, cara, tô tranquilo pode falar, na verdade, eu já ia te ligar.

– Então, tá a fim tomar umas cervas ali no Pau Brasil e trocar umas ideias? – perguntei sem cerimônia.

– Bora nessa! Eu ia te ligar justamente pra te fazer a mesma proposta – respondeu Augusto, naquele tom de camaradagem que só existe nas verdadeiras amizades.

– Então tá combinado, meu irmão, a gente se encontra lá por volta das onze – concluí, esperando só a confirmação de Augusto.

– Fechado! A gente se vê lá, abraço – confirmou Augusto.

– Valeu! – eu disse, desligando o telefone.

Fui para casa tomar um banho, trocar de roupa, comer alguma coisa e saber se a Daniela gostaria de tomar suas vodcas com soda e dar uma espairecida. No caminho, eu ainda pensava na história do sapato, porém, com menos intensidade – a Esfinge fechara a sua boca e recuava –, porque eu já tinha conseguido tranquilizar um pouco meu cérebro com uma interpretação plausível e até provável para aquela cena.

Chegando em casa encontrei a Daniela com a cara amarrada, assistindo sua novela e nada disposta a conversas. Tentei brincar, em vão. Tentei acariciar, também em vão. Preparei um lanche e fui comê-lo na sala, ao lado dela e diante da televisão.

– Por acaso você pode fazer o favor de ir comer na cozinha, você vai sujar a casa toda com essas migalhas de pão – me repreendeu Daniela, assim que sentei no sofá, e como eu não estava disposto a discutir, levantei resignadamente, sem proferir uma só palavra e fui comer na cozinha.

Assim que terminei o lanche, voltei à sala para saber se Daniela gostaria de sair para se divertir um pouco. Esperei o comercial e então perguntei:

– E aí, Dani, você quer sair pra tomar umas vodcas e dar uma desestressada?

– Quem te disse que eu tô estressada? – respondeu ela rispidamente.
– Não, meu amor, é maneira de falar, só estou querendo saber se você não gostaria de sair pra se divertir um pouco – tentei amenizar e esclarecer.

– Não, obrigada! Aposto que você tá pensando em ir naquele bar barulhento que só toca rock, faz tempo que não suporto mais esse tipo de música. Prefiro ficar aqui mesmo, sozinha. Antes só do que...

Daniela praticamente sussurrou esta última frase, apesar disso, eu consegui entendê-la. Saí da sala e fui para o banheiro. Lavei o corpo com água e sabão e a alma com lágrimas, tentando lembrar o momento exato em que aquela Daniela meiga, espirituosa e brincalhona pela qual me apaixonei se transformou nesse poço de amargura, ressentimento e rispidez com o qual tenho o desprazer de conviver hoje.

Troquei de roupa; fui à sala e comuniquei que estava saindo:

– Já vou indo, não vou demorar, tchau! – e Daniela continuou como estava, não moveu um músculo sequer e, como se eu fosse um fantasma, ignorou a minha presença e as minhas palavras. Virei e saí.

“Vinte, vinte, vinte quatro horas a mais

Eu quero ser sedado

Nada de amor

Nada de paz

Eu quero ser sedado

Me leva pro aeroporto, me bota no avião

Vamo, vamo, vamo eu hoje tô o cão

Eu não controlo a cuca

Eu não controlo a mão

Oh, não, não, não, não, não”...

Quando cheguei ao bar, por volta das onze e quinze, tocava essa versão de I wanna be sedated, do Ramones, cantada pela Rita Lee, me senti em casa; na verdade, me senti muito melhor do que em casa. O Augusto já estava lá, na mesa que tínhamos o hábito de ocupar. Assim que sentei, ele me perguntou:

– Que cara é essa, meu irmão?

– Nada... ou melhor, o de sempre: o mal humor da Daniela... mas deixa isso pra lá, já melhorei com a música e daqui duas cervejas vou estar completamente curado – respondi abrindo a primeira delas.

– Meu irmão, mudando de assunto, passei o dia inteiro lembrando daquele cara do sapato, no caminho pro trabalho – disse Augusto, depois de sorver um grande gole de cerveja.

– Então, fomos dois, meu chapa – respondi, me ajeitando na cadeira – E como você interpreta aquela mensagem, Augusto? – interroguei.

– Mensagem?! Não entendi, como assim? – indagou Augusto, meio confuso.

– Isso mesmo, meu amigo: uma mensagem. É assim que interpreto as coisas que acontecem ao meu redor. Não acredito em acaso, não acredito em coincidência. Acredito que a vida é um livro; cada ano, um capítulo; cada dia, um parágrafo; cada momento, uma linha escrita e cada acontecimento, uma possível mensagem, cujo conteúdo devemos, ao mesmo tempo, vivenciar e interpretar se quisermos ser, pelo menos, coautores do livro de nossas próprias vidas. Caso contrário, continuaremos desempenhando o medíocre papel de fantoches, sem jamais interferirmos conscientemente na história que, à nossa revelia, vai sendo escrita para nós.

– Pô cara, foi exatamente essa a sensação que eu tive, a sensação de que aquela não era uma cena qualquer, tive a forte impressão de que devia haver por trás daquilo uma significação qualquer, como você acabou de dizer, pois a imagem daquele cara largando o sapato e seguindo o caminho não me abandonou por um segundo sequer. Não é comum um evento qualquer me impressionar tanto e por isso passei o dia inteiro tentando encontrar uma explicação pra aquela cena – declarou Augusto, em tom de desabafo.

– Então, como você interpreta aquela cena, aquela mensagem que foi enviada pra nós? – perguntei, curioso.

– Prefiro ouvir sua versão primeiro, antes de socializar a minha – respondeu Augusto, abrindo mais duas long necks e me oferecendo uma.

– “Quantos olhos, tantas vistas”, diria Machado de Assis... – pensei alto, e antes que eu pudesse continuar, interveio Augusto:

– Que merda é essa, meu irmão, já tá bêbado, com duas cervejas?

– Não, cara, tenha paciência, seu mané, você nasceu de cinco meses? O que ia dizendo, quando pensei no Machado e antes de ser interrompido, é que cada um interpreta as mensagens ou os acontecimentos a partir da perspectiva ou da visão de mundo adota, entendeu? É como se cada indivíduo enxergasse as coisas por meio de uma lente e essa lente foi e vai sendo construída a partir das experiências de vida de cada um, percebe? Por isso que é tão difícil conseguir o consenso em qualquer coisa que envolva mais de uma pessoa – concluí, pensativo.

– E aí? Vai dar sua versão da cena que presenciamos ou vai ficar filosofando? – Augusto perguntou rindo.

– Como eu já te disse, recapitulei, pensei e refleti o dia inteiro sobre aquela cena e a mensagem que, até agora, eu consegui extrair dela pode ser traduzida mais ou menos assim:

– Se algo te incomoda, livre-se imediata e absolutamente disso - como aquele homem fez com o sapato -, pois nada que te incomode pode ser indispensável, além disso, despreze o que vão pensar ou dizer sobre a sua ação, faça como aquele homem, não olhe para trás – concluí, um pouco emocionado ao lembrar da decisão que eu havia tomado minutos antes, durante meu banho.

– Pô, meu irmão, faz muito sentido. Faz sentido também o que você disse sobre interpretarmos a mensagem de acordo com as nossas concepções, porque a minha interpretação é um pouco diferente da sua, não por acaso, mais sociológica. Eu interpretei assim, vê se faz sentido pra você:

– Eu, você, o garçom, o vocalista, o baterista, o barman – Augusto apontava enquanto falava – enfim, todos, formamos juntos um corpo social, ao qual demos o nome de sociedade, certo?

– Certo!

– Atualmente - e sabe-se lá desde quando, acho que desde que foi constituída na pré-história - essa sociedade é excludente. Exclui ou deixa à margem tudo e todos que não se adaptam às suas normas, tudo que atrapalha o seu bom funcionamento ou tudo o que incomode e influencie negativamente os que se adaptaram ou se submeteram às suas regras, concorda?
– Cara, pra que você tá me perguntando isso? Eu estudei História e não Administração, você sabe que eu concordo – respondi.

– Bicho, você nunca ouviu falar em retórica?

– Vai, continue.

– Então, recapitulemos o que eu estava dizendo, antes de você me interromper: juntos formamos uma sociedade que simplesmente descarta o que a incomoda, ou seja, naquela cena que nos impressionou, o homem maltrapilho, sujo, fedido, com problemas mentais representa a sociedade. E pra ser sincero, em minha concepção, é a melhor imagem ou representação que já vi da nossa sociedade, a que mais se aproximou da verdade. Pra completar a cena, o sapato - que incomodava e que sem cerimônia ou remorso foi descartado, abandonado no meio da rua - representa os moradores de rua, os drogados, os bêbados, os sem-teto, os loucos, os criminosos e todos os outros dejetos sociais, para os quais demos as costas, ignorando-os, achando que isso era suficiente para que deixassem de existir.

– É isso! Essa é minha interpretação para aquela cena – concluiu Augusto.

– Putz, meu irmão, você anda lendo muito Marx – brinquei.
– Nem é preciso conhecer Marx pra chegar a essa conclusão, basta não ser cego, e não tô me referindo a cegueira física, mas a outro tipo de cegueira, a cegueira moral ou espiritual, no sentido filosófico do termo.

O resto da noite foi só rock’n’roll e cerveja. Nos embriagamos e rimos a noite inteira. Eu ignorei a promessa que tinha feito à Daniela de não demorar, e quando cheguei em casa o sol já despontava, pra não acordá-la preferi dormir no sofá. No sábado, assim que ela acordou, por volta das dez horas da manhã, tivemos nossa última discussão.

Na verdade, só ela discutiu. Escutei tranquilamente tudo que ela tinha pra dizer e xingar. Quando ela terminou, fui até o quarto, peguei duas calças jeans, cinco camisetas, um tênis, minha escova de dentes, coloquei tudo numa mochila, saí e nunca mais voltei. Deixei pra trás aquele casamento que estava me incomodando a muito tempo.

Afinal, de que adiantaria eu receber uma mensagem tão eloquente como aquela e passar mais de quatorze horas tentando decifrá-la, decodificá-la, se ela não me servisse para nada, se não fosse para eu compreendê-la como uma mensagem para mim e se não fosse para eu colocá-la em prática na minha vida?

Mas a mensagem não foi só para mim, foi para o Augusto também e ele compreendeu isso. Assim que acabou aquele ano letivo, Augusto se mudou para uma grande cidade e se engajou visceralmente em diversos movimentos sociais em prol dos excluídos de toda espécie. Agindo assim, Augusto deixou para trás toda vã teoria e partiu para a prática; aboliu a ficção para viver a realidade.

Augusto se dedicou mais intensamente a um movimento que lutava em benefício dos sem-teto. Reivindicou social e judicialmente os direitos daquela gente; incomodou as autoridades, solicitando entrevistas; denunciou na imprensa os abusos e os descasos dessas mesmas autoridades para com os sem-teto; organizou manifestações; coordenou ocupações; e morreu defendendo essa causa, durante uma violenta operação policial de reintegração de posse.

Acabo de chegar do enterro de Augusto, então, em sua homenagem, resolvi compartilhar essa história, para que você, meu amigo leitor, tivesse acesso à mensagem que eu e Augusto recebemos e para que começasse a prestar atenção às mensagens que, das formas mais inusitadas e insuspeitas, podem lhe ser enviadas.

Já ia terminando essa história quando chegou em minha casa um amigo e colega de profissão, o Eliézer, que também era amigo do Augusto e vinha do enterro. Quando entrou, perguntou apontando para o computador ligado:

– Você tava trabalhando?

– Não, tava só escrevendo uma história que aconteceu comigo e com o Augusto.
– Posso ler?

– Claro! Senta aí – respondi, puxando a cadeira para que ele sentasse em frente ao computador.

Dez minutos depois, afastou a cadeira, olhou em minha direção e falou:

– Dia 13 de maio é o dia em que se comemora a Abolição da Escravatura, lembra? E tem mais: durante o período da Escravidão, para os escravos o sapato simbolizava a liberdade. Por isso, quando um escravo era alforriado, a sua primeira atitude era comprar sapatos para, por assim dizer, declarar sua nova condição.

– Caraca, meu irmão, é mesmo. Isso significa que aquele acontecimento carregava implicitamente três níveis convergentes de significação, isto é, a data, a cena como um todo e o sapato separadamente, tudo apontava simultaneamente pra a ideia de liberdade... é... impressionante.

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