“Um escritor de talento”.
Carlos gostava de pensar em si mesmo como um escritor de talento. As
pessoas próximas concordavam, em maior ou em menor grau, mesmo aqueles que não
leram nenhuma linha do que ele escrevia. Esses consideram que um escritor de
talento se define pela atitude. E Carlos tinha muita atitude, muita mesmo.
Embora Carlos fosse talentoso, isso não quer dizer que ele era um
escritor genial. Aliás, pelo menos nisso, eu e o Luiz concordamos, embora
nossas concepções sobre a genialidade sejam bem diferentes uma da outra. A
genialidade pra ele é um Camaro amarelo; pra mim, uma Lambourguini Veneno,
muito mais rara e difícil de se encontrar.
Na Faculdade, Carlos teve um ótimo desempenho. Dedicou-se integral e
intensamente, foi aluno exemplar, querido por quase todos os professores. Lia
todos os textos e participava ativamente das aulas. Durante os intervalos,
normalmente, permanecia na sala de aula lendo um clássico, sugerido por um
professor que nunca lia o que indicava.
Nas poucas vezes que deixava a sala de aula durante o intervalo era para,
sob algum pretexto, ir à sala dos professores tomar um café. Nessas ocasiões,
sentado à mesa, bem à vontade, como se fizesse parte daquele universo, fazia-se
ouvir, mais pelo timbre da sua voz – grave e nítida – do que pelo conteúdo de sua
fala, que não despertava lá grande interesse:
– Entre Dostoievski e Tolstoi, prefiro Dostoievski, por ser mais realista
e psicologizar. Entre Machado e Lima Barreto, prefiro Machado, por psicologizar
mais e por ser cínico e menos revoltado. Entre Goethe e Suassuna, prefiro
Suassuna, por ter criado um personagem mais astucioso que o próprio diabo – e
ria satisfeito consigo, acreditando ter dito alguma coisa ao mesmo tempo
inédita e profunda.
Carlos concluiu o curso apresentando e defendendo uma monografia que
tratava das Semelhanças estéticas e aspectos psicológicos nas obras de
Dostoieviski e Machado, que, diga-se de passagem, foi aprovada sem correções e
indicada à publicação, que infelizmente nunca aconteceu. Carlos formou-se com
louvor. Foi o orador de sua turma. No final de seu discurso, proferido na
cerimônia de formatura, no auge do seu entusiasmo e da sua eloquência, Carlos
assim se expressou:
– Acredito que cada um de nós – formandos de Letras - da turma Gustave
Flaubert – estamos aptos, graças à dedicação de nossos estimados mestres, a
galgar aos mais altos postos da carreira acadêmica ou aos mais altos degraus da
carreira literária, dependendo da vocação que cada um sinta pulsar dentro de
si. Tenho certeza que essa turma contém, em germe, escritores consagrados,
acadêmicos altamente patenteados e profissionais diversos, eminentemente
gabaritados. Estou certo de que os membros da turma Gustave Flaubert ainda vão
ser motivo de orgulho para nossa cidade, para o nosso estado e, quiça, para o
nosso país. Viva a turma Gustave Flaubert!
Formado, Carlos dedicou-se à carreira literária, pois sentia em si uma
vigorosa efervescência literária prestes a eclodir, no entanto, gostava da
ideia de compartilhar seu conhecimento e de certa forma demonstrar o amor que
sentia pela literatura. Por isso, decidiu dividir-se entre a carreira literária
e o magistério, pelo menos enquanto não fosse um escritor consagrado. Aliás, há
alguns meses já vinha trabalhando em seu romance de estreia, convicto de que
seria um sucesso, uma unanimidade tanto diante do público leitor, quanto de
crítica.
Durante dois anos Carlos trabalhou naquele romance. Nas horas vagas, nas
horas mortas, nos finais de semanas e nas férias, Carlos só pensava no romance.
Literária Mente era o título. Era a história de um sujeito chamado Literato,
obcecado por literatura, respirava literatura, pensava literatura, comia
literatura, bebia literatura e falava de literatura. O curioso e o inusitado –
e que de fato exigiu de Carlos um enorme esforço na elaboração do romance – é
que todas as falas do personagem eram citações ou falas de personagens
extraídas dos clássicos. Por exemplo, na fala que encerra o romance Literato
declarava: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa
miséria”.
Carlos ofereceu seu romance a algumas editoras, as maiores
desvencilhavam-se dele afirmando que analisariam o trabalho e posteriormente
entrariam em contato; as menores afirmavam que não tinham recursos para
editarem por conta própria, que só editavam sob encomenda; as medianas
propunham contratos abusivos em que os autores deveriam arcar com setenta por
cento dos custos e abdicar cinquenta por cento dos direitos autorais.
A ansiedade de estrear no universo das letras, de ver seu livro publicado
e, como consequência óbvia (para ele), ter seu nome consagrado, Carlos firmou
contrato com uma dessas editoras medianas, mas sem expressão. Durante três
meses, acompanhou de perto, passo a passo, a confecção de seu livro. Nesse
intervalo de tempo, Carlos aproveitou para promover o lançamento do seu livro
nas redes sociais, nos clubes literários, nas faculdades, nas escolas e nas
livrarias, além disso, cuidou dos detalhes do evento, para que nada saísse
errado.
No dia do lançamento do seu livro, Carlos estava radiante, tudo correu
perfeitamente. O auditório do Clube Literário, do qual Carlos fazia parte,
estava lotado. Além de familiares, de amigos pessoais, dos companheiros de
trabalho, de alunos, de colegas e professores da turma Gustave Flaubert, aquela
assembleia contava ainda com a participação de três críticos literários e de
diversos escritores: muitos medíocres, alguns esforçados, pouquíssimos
talentosos e apenas um consagrado. Este, de passagem pela cidade, resolveu dar
o ar de sua graça – visto não haver nada melhor pra fazer naquela noite – com o
propósito exclusivo de ser bajulado e ter seu ego acariciado.
O evento foi um sucesso. Os livros vendidos quase cobriram os custos da
publicação. Carlos acordou tarde e satisfeito, saiu para comprar o jornal e ver
se havia alguma nota sobre o lançamento do seu livro. Não encontrou nenhuma. No
dia seguinte também não, nem no terceiro dia após o lançamento. Carlos achou
estranho, mas deu de ombros.
– Afinal, eventos literários não são dignos de concorrer com os eventos
da high society. Além disso, o importante são as críticas que hão de ser
publicadas nos próximos dias – pensava Carlos, justificando aquela indelicadeza
por parte da imprensa e consolando-se com essa ideia.
No entanto, o que era pra ser seu
consolo tornou-se seu tormento. Passaram-se dez dias, e nem uma crítica; três
semanas e ainda nada; um mês e nenhuma linha. A princípio, Carlos justificou
para si aquela negligência dos críticos atribuindo-a ao encerramento do ano
letivo, afinal, muitos críticos eram professores acadêmicos e deveriam estar
atarefadíssimos naquele momento.
À medida que as semanas foram passando, e se acumulando, e convertendo-se
em meses, e que um absoluto silêncio insistia em pairar sobre seu livro e o
anonimato, sobre seu nome, e não conseguindo mais justificar aquele desprezo
para com seu livro, Carlos gradativamente foi perdendo as esperanças e
tornando-se taciturno, meio sombrio, meio depressivo. Seus pais perceberam essa
mudança, mas acreditavam que se tratava de alguma desilusão amorosa.
Carlos, então, saia de casa apenas para ir ao trabalho, encarando-o como
seus colegas encaravam: como um ganha-pão e não mais como um projeto de vida,
um tributo a se prestar. Deixou a literatura de lado e passou a se interessar e
ler sobre neurologia e psiquiatria. Mais ou menos dois meses depois do
lançamento de seu livro, Carlos comprou três livros sobre esses assuntos:
“Compêndio sobre doenças neurológicas”, “Tratado de Neurologia” e “Aspectos
Psiquiátricos das Doenças Neurológicas”, dos quais, em casa, não se afastava
desde então.
Carlos permaneceu em seu ostracismo voluntário por cinco meses, vinte e
sete dias e treze horas, até que um dia foi convidado (e aceitou) a expor seu
livro numa grande Feira Literária, que contaria com a participação de escritores
de expressão nacional. No dia marcado, na parte da tarde, Carlos cortou o
cabelo e se barbeou. No começo da noite, tomou um banho demorado, vestiu sua
melhor roupa, se perfumou, e antes de sair, olhou-se no espelho e sorriu,
orgulhoso de si, sentindo-se a atração principal do evento.
Durante a cerimônia de abertura, permaneceu discreto no lugar que lhe
fora reservado, na terceira fila, atrás das autoridades e dos escritores
renomados. Ao final da cerimônia de abertura, os escritores participantes, inclusive
Carlos, foram convidados a subir ao palco para tirarem a foto oficial do
evento. Naquele momento, Carlos esquivou-se das cerimonialistas e,
imiscuindo-se, postou-se na primeira linha, ao lado dos escritores consagrados.
Os fotógrafos, acotovelando-se, colocaram-se a postos, diante do palco,
aguardavam apenas a saída das cerimolialistas para dispararem seus flashes.
Assim que as cerimonialistas deixaram o palco, uma sequência de flashes teve
início e durou uns vinte segundos. Quando os fotógrafos já se preparavam para a
segunda bateria de fotos, Carlos desabou diante de todos em uma crise
convulsiva, semelhante a uma crise epiléptica.
Imediatamente, algumas pessoas acorreram para prestar-lhe assistência. Um
médico se apresentou e assumiu a coordenação dos primeiros socorros.
Gradativamente a crise foi arrefecendo e Carlos recobrando a consciência. Ainda
meio atordoado, parecendo não entender o que havia acontecido, Carlos se viu
cercado de cuidados e de atenções, que se prolongaram e intensificaram enquanto
permaneceu no evento.
Amparado por outros escritores, Carlos levantou-se, afirmando que se
sentia melhor e que gostaria honrar seu compromisso, indo para a mesa que lhe
reservaram expor seu livro. Como se nada tivesse acontecido, Carlos passou a
noite atendendo a todos com cordialidade, agradecendo-lhes a solicitude e
dizendo-lhes com bom humor:
– Garanto que aquele mal súbito não há de ser nada sério nem grave, mas,
de qualquer forma, procurarei um médico amanhã, a fim de fazer um check up.
Portanto, tranquilizem-se e vão se acostumando com a ideia de serem obrigados a
me aturar por muito tempo ainda – dizendo isso, ria e, nisso, era acompanhado
pelos que estavam ao seu redor, admirados da serenidade com que aquele homem
encarava seu problema.
No dia seguinte, cientes dos acontecimentos da véspera, os pais de Carlos
acompanharam-no a uma consulta médica. Informado das características da crise
que Carlos sofrera, o neurologista solicitou uma batelada de exames, marcando
para a semana seguinte o retorno para analisar os resultados dos mesmos e dar
um diagnóstico mais preciso, mas suspeitava, considerando as características da
crise, que Carlos sofria de epilepsia.
Dito isso, o médico procurou tranquilizar Carlos e seus pais, afirmando
que a Neurologia havia avançado bastante nos últimos anos no que se refere ao
estudo e ao tratamento da epilepsia. Assim, caso o diagnóstico fosse
confirmado, garantia que com a intervenção medicamentosa precisa e com os
tratamentos apropriados Carlos teria uma vida praticamente normal. Depois dessa
explicação tranquilizadora, Carlos e os pais deixaram o consultório médico.
Aparentemente, Carlos estava mais tranquilo que seus pais.
Uma semana depois, enquanto aguardava sua vez na sala de espera do
consultório médico, Carlos regozijava-se relendo, talvez pela centésima vez,
uma crítica extremamente elogiosa sobre seu livro – Literária Mente – e sobre
sua personalidade. A crítica havia sido publicada na véspera e estava assinada
por um dos mais importantes críticos da região: Ângelo Saldanha.
Quando abriu a porta de seu consultório para despedir-se de um paciente e
ao mesmo tempo convidar Carlos para entrar, o médico percebeu que ele lia o
jornal compenetrada e prazerosamente. Ao ouvir seu nome ser chamado, Carlos
dobrou o jornal com cuidado, pegou um envelope grande e volumoso que estava ao
seu lado, estampou um largo sorriso no rosto e caminhou para o consultório.
Ao cumprimentar Carlos, o médico exclamou:
– Vejo que alguma notícia o agradou bastante.
– O senhor não imagina quanto doutor. Ontem foi publicada uma crítica
bastante elogiosa a respeito do meu livro e isso me deixou muito contente. No
momento em que o senhor me chamou eu estava relendo a crítica. A propósito,
trouxe para o senhor um exemplar do meu livro e uma cópia da crítica, para o
senhor passar os olhos, quando tiver um tempinho. Aqui estão.
– Muito obrigado! – agradeceu o médico – Fique certo de que vou ler com
muito prazer. Mas, por ora, vamos falar do que te trouxe aqui. Antes de ontem o
laboratório me enviou seus exames, analisei cada um deles detalhadamente e mais
de uma vez. E devo te confessar que até agora o seu caso é um mistério para
mim, pois não consegui identificar o motivo de sua convulsão. Seus exames não
apresentaram absolutamente nenhum dos traços característicos da epilepsia. Mas
não se preocupe, vou solicitar alguns outros exames, consultarei outros médicos
amigos meus, continuarei investigando, não vou descansar enquanto não identificar
a causa da sua convulsão – disse o médico com convicção.
– Tudo bem, doutor. Tenho plena confiança em sua capacidade, sei que
senhor vai descobrir o motivo daquela convulsão – afirmou Carlos
tranquilamente, esboçando um sorriso malicioso e levantando-se para deixar o
consultório – De qualquer forma – continuou Carlos estendendo a mão ao médico
–, desde já, agradeço sua dedicação e seu esforço no sentido de me ajudar.
Depois disso, o médico acompanhou Carlos até a porta, entregou-lhe a
solicitação de novos exames e despediu-se dele, seguindo-o com o olhar até a
saída. A calma que Carlos demonstrou diante da incerteza do seu diagnóstico, a
leveza com que Carlos lidava com aquele problema intrigou o médico, que,
naquele momento, o considerou um sujeito diferente, digno de admiração.
Com esse pensamento o médico chegou à sua mesa, sentou-se, e baixando os
olhos viu sobre a mesa o envelope que Carlos lhe entregara. Tirou de dentro do
envelope o livro e a cópia da crítica que Carlos havia mencionado. Folheou o
livro de trás para frente, detendo-se ligeiramente, numa e noutra página,
aleatoriamente. Pegou a folha que continha a crítica e começou a ler meio
distraído. De repente, quase no fim da crítica, deparou-se com uma passagem que
lhe chamou a atenção e que, de alguma forma, parecia desafiá-lo.
Levantou-se, andou de um lado para o outro, bebeu um pouco d’água, parou
diante da janela, olhou para fora e ficou pensando por alguns segundos.
Voltou para sua cadeira, pegou novamente a crítica e releu a seguinte
passagem:
“Estou certo de que se o leitor, que deve estar ansioso por folhear e
conhecer o livro Literaria Mente, o ler com ânimo repousado, com vista
simpática, justa, reconhecerá que é um livro de estréia, incerto em partes, com
as imperfeições naturais de uma primeira produção. Mas não se envergonhe o
autor das imperfeições, nem se vexe de as ver apontadas; agradeça-o antes. A
modéstia é um merecimento. Poderia lastimar-se se não sentisse em si a força
necessária para emendar os senões inerentes aos trabalhos de primeira mão. Mas
será esse o seu caso? Há no seu romance uma espontaneidade de bom agouro, uma
natural simpleza, que a arte guiará melhor e a ação do tempo aperfeiçoará”.
“Além disso, é importante ressaltar que o livro Literariamente reflete a
força do seu autor, sua determinação, seu compromisso para com a literatura,
mesmo diante da adversidade, da dor. Dor que se manifestou e que foi vencida
diante de um auditório repleto. Dor que estabelece uma ligação entre o autor de
Literaria Mente e autores universalmente consagrados como Dante, Dostoievski,
Machado, Flaubert, Moliere, Dickens, Tolstói, Byron, entre outros. Dor que
Carlos e esses autores consagradíssimos suportaram e venceram, e que atualmente
recebe o nome de epilepsia”.
Instigado pela crítica – instigar, aliás, deveria ser a função de todas
as críticas – o médico sentiu vontade de ler o livro. Leria sim, quando tivesse
tempo. Em breve, em breve. Clinicar toma tempo. Quem sabe viesse a ter um
paciente ilustre. Deveria se preparar para conversar com ele sobre coisas
profundas, literatura, arte, alta cultura.
Voltou a folhear o livro de Carlos. Não sabia, mas justamente na página em que abriu havia um trecho que era ao mesmo tempo uma criação literária, metalinguagem, recriação, citação e diagnóstico. Leu distraidamente e deixou passar o fator médico, só se sentido orgulhoso do próprio verniz de erudição por ter conseguido reconhecer a citação:
“O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente”.
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